Moda Conceitual (Parte 3/3)

No último post, apresentamos Milena Canonero e falamos sobre como, na minha opinião (ou seja, de alguém que não entende muito de moda e nem de cinema), o seu trabalho em Laranja Mecânica continua sendo, de longe, o melhor. Não apenas por ser o mais original, mas principalmente por ser o mais conceitual.

O que não deveria ser surpresa.

Para Canonero, o conceito é – e sempre foi – prioridade. Ela mesma disse isso.

Mais ou menos 4 anos atrás, do alto de seus 71 anos, Milena foi homenageada com o Honorary Golden Bear de 2017 pelo conjunto de sua obra, durante a 67ª edição do Festival Internacional de Cinema de Berlin (Berlinale). Na coletiva de imprensa, em seu discurso de agradecimento, ela surpreendeu a todos dizendo o seguinte:

“O que me interessa de verdade não é o figurino em si.
O que me interessa é o CONCEITO.”

Assistam ao vídeo abaixo e veja a reação do público. Alguns começam a rir, mal acreditando no que tinham acabado de ouvir. Se vocês prestarem atenção, há até mesmo um jornalista de queixo caído, com a boca literalmente aberta.

Pensando bem, faz sentido que o público tenha reagido dessa forma.

Afinal, ali estava Canonero, sendo homenageada por seu trabalho com figurinos, e ela vem e diz que o que importa realmente para ela NÃO são os figurinos.
Diz que, na verdade, é outra coisa.
O conceito.

Considerando sua extensa e longeva carreira, seu vastíssimo conhecimento e sua imensa experiência, a afirmação de Canonero de que ‘o que me interessa é o conceito’  soa como o tipo de conclusão definitiva que só pode ser alcançada após décadas trabahando e aprendendo com alguns dos maiores diretores da história. Quase como uma pérola de sabedoria que demora uma vida inteira para ser forjada.

Pois é. Mas não é o caso.

Como eu disse no começo deste post, o conceito SEMPRE foi prioridade para ela. Esta sempre foi sua abordagem: seguir o conceito acima de tudo.

“Não é o figurino em si que eu gosto de criar.
Lógico que é interessante, mas o que me atrai, de fato, é
o significado (por trás do figurino).
(O figurino) cumpre um
propósito.
(E por isso) temos que
SEGUIR O CONCEITO”.

Essas são as palavras de uma jovem Canonero, numa entrevista para o site Facineshion.com, em que ela nos conta mais sobre seu processo criativo e também sobre o guarda-roupa que criou para o primeiríssimo filme em que trabalhou: o inacreditável Laranja Mecânica.

Em outra palavras, desde o comecinho da sua carreira, sua forma de pensar já era 100% conceitual. E foi exatamente essa forma de pensar que a levou a criar um dos figurinos mais icônicos de todos os tempos: o uniforme da Gangue dos Droogs.

Indecentes.
Enlouquecidos.
Perturbadores.
Inquietantes.

Essas foram as palavras que me vieram à mente quando bati os olhos – pela primeira vez – nos trajes da Gangue dos Droogs. Coincidência ou não, essas também foram as palavras que melhor descreviam o comportamento psicótico e violento dos membros da gangue.

A mer ver, a escritora Lynn Hlaing, da F@B - Fashion at Brown (uma organização estudantil dedicada a trazer a moda para a comunidade da Brown University) foi quem deu a melhor descrição. Segundo ela, o figurino de Canonero no filme era uma “estranha fusão entre depravação e classe”, que “brincava com elementos de rebeldia e conformidade”, e tinha um ar “sombrio e nefastamentee carismático”.

Putz. Isso, sim, é uma descrição! Bem dito, Hlaing.

Se Canonero nos diz que temos que seguir o conceito, então, obviamente a pergunta que se segue é: ok, e qual é o conceito por trás de Laranja Mecânica?  

Segundo um artigo publicado pela revista New Yorker, e escrito em 1973 pelo próprio Anthony Burgess (ele é o autor do livro Laranja Mecânica, que Kubrick transformou em filme), o conceito era o poder da escolha (vocês podem ler o artigo completo aqui).

Particularmente no caso do livro, Burgess está se referindo à escolha entre “o livre-arbítrio do indivíduo” versus os “padrões de conformidade impostos por um Estado que tem o ‘bem coletivo’ em mente”. Existe uma dualidade aqui. Por um lado, temos o cidadão. Por outro, um “Estado que vai longe demais, adentrando uma área que vai além do pacto estabelecido com o cidadão”, como diz o próprio Burgess.

Essa dualidade pode ser vista em cada centímetro do figurino criado por Canonero.

Temos o chapéu-coco, que há tempos costuma ser associado à alta sociedade. Temos as botas “bovver” (bovver é a pronúncia cockney do verbo inglês “bother”, que significa incomodar, perturbar), famosas por serem usadas por gangues e hooligans para chutar pessoas durante brigas de rua. Ou seja, literalmente da cabeça (o chapéu) aos pés (as botas), podemos ver o conflito e a dualidade. 

E então, temos a bengala. A bengala carrega muito simbolismo, visto que é um item que representa o estilo de vida das elites. No entanto, nas mãos de Alex, ela torna-se uma arma que ele usa para atacar as normas e tradições ditadas justamente por essa mesma elite. Mais uma vez, existe uma dualidade aqui.

O mesmo pode ser dito sobre a coquilha (o protetor genital) de críquete: o críquete é um esporte extremamente elitista, reservado normalmente a indivíduos da alta sociedade. Exceto que neste caso, Alex e seus comparsas usam as coquilhas como equipamento de proteção em suas lutas contra, mais uma vez – e ironicamente –, a alta sociedade.

Ao misturar – no mesmo figurino – suspensórios, que era um artigo usado pelas classes trabalhadoras da década de 60 (e também pelos skinheads da época), com itens de elite (como o chapéu-coco e a bengala), Canonero tinha a clara intenção de quebrar as barreiras entre classes, de certa forma enaltecendo a classe trabalhadora e zombando da alta sociedade. 

Em um artigo escrito em 2019 para a British Film Institute, a escritora francesa Elena lazic analisa o estilo indumentário da Gangue dos Droogs e levanta uma reflexão interessante, apresentando a hipótese de que, através de suas roupas, Alex escancarava esse conflito de classes ao “transformar objetos de opressão em armas e armaduras na sua luta contra os opressores”.

Nenhuma conversa sobre o figurino de Laranja Mecânica estaria completa sem mencionar os icônicos cílios postiços no olho de Alex. Sim. Olho. No singular. Colocar cílios em apenas um olho foi proposital. Mas qual o sentido por trás dessa escolha?

Bom, ao invés de eu tentar explicar, acho que é mais fácil ouvirmos o que Canonero e Barbara Daly – a maquiadora do filme – disseram a respeito.

Segundo a própria Canonero: “Kubrick me deu diversas dicas (...). Ele sempre me disse que a cabeça é o elemento mais visível de um filme e que eu deveria sempre começar por ela. (...) Eu conversei com a Barbara (...) e juntas decidimos que (...) colocar cílios postiços em apenas um olho daria um ar implacável e surreal a Alex.”

Barbara completou o raciocínio de Milena, dizendo que estava buscando por algo que agregasse valor ao incrível figurino de Canonero: “Tinha de ser algo extraordinariamente estranho. (...) Algo dramaticamente esquisito. Então eu disse a Stanley, ‘e se a gente usasse cílios postiços?’ e ele disse ‘vamos testar e ver como fica’. (...) (Testamos e)  todos nós tivemos a mesma reação ‘É isso! Ficou sinistro.”

 
 

Canonero trabalha com propósito. Sua abordagem conceitual a impede de trabalhar de outra forma. Os cílios. A coquilha. A bengala. Os suspensórios. As botas bovver. Tudo foi escolhido como parte do desenvolvimento do personagem e como um reflexo da psiquismo desse personagem enquanto ser humano. Existe significado por trás de todos os seus designs.

E existe pesquisa também. MUITA pesquisa.

Tal qual Ruth Carter, Canonero é, acima de tudo, uma pesquisadora.

Um excelente exemplo do seu compromisso com o trabalho de pesquisa pode ser visto no figurino criado por ela para o filme África Minha (1985), com Meryl Streep e Robert Redford. Um artigo do jornal The New York Times intitulado Milena Canonero: Fashion On And Off The Court, e publicado em 11 de fevereiro de 1986, descreveu seu processo de pesquisa durante a pré-produção do filme da seguinte forma:

“Depois de ler o roteiro, ela estudou os trajes das tribos nativas do Quênia, bem como os dos colonos brancos do início do século XX. Ela foi a bibliotecas, embaixadas e museus em Nairóbi e Londres. Ela também conversou com os contemporâneos do autor do livro, Isak Dinesen.

“Você encontra esse cara incrível que mora sozinho em Yorkshire e que tem a maior coleção de referências somalis”, disse ela. '' Você fotografa tudo. Não importa o quão bem você conheça um determinado período, você ainda precisa revisitá-lo. Só depois de fazer minha pesquisa,'' ela disse, '' é que eu parto para o trabalho de criar o que cada personagem deve vestir.”

Aliás, essa é outra coisa que Ruth Carter e Milena Canonero têm em comum: filmes que se passam na África.

No caso de Canonero, estamos falando de um épico que se passa no Quênia e conta a história de uma aristocrata (vivida por Meryl Streep) que se vê dividida entre manter seu sofisticado (porém tedioso) estilo de vida ou abrir mão dele para viver um grande amor ao lado de um caçador simples e de espírito livre, mas que lhe oferece a chance de expandir seu mundo.

O filme chama-se África Minha.

No caso de Carter, também estamos falando de um épico, que se passa no fictício país africano de Wakanda, e conta a história de um príncipe que se torna rei após a morte do pai, e que se vê dividido entre manter os segredos, as riquezas e as tecnologias de Wakanda dentro dos limites de Wakanda (como fizera seu pai antes dele) ou revelar a existência de Wakanda para o mundo, abrindo suas fronteiras e compartilhando suas benesses.

Estamos falando, é claro, do magnífico blockbuster da Marvel, Pantera Negra (2018).

Eu poderia ficar o dia inteiro aqui, escrevendo sobre as centenas de roupas que Carter criou para o filme. Eu amo escrever sobre isso, amo falar sobre isso e amo aprender mais sobre isso. Aos meus olhos, é um dos trabalhos mais elaborados, inclusivos e abrangentes já criados na história dos designs de figurinos. Não à toa, ela ganhou um Oscar por ele.

Mas como essa série de 3 posts já ficou excessivamente longa e eu já tomei tempo demais de vocês, ao invés disso, vou focar em algo mais específico: prefiro falar sobre o fato de que com conceitos, sempre há muito mais do que aquilo que nossos olhos são capazes de ver. E é justamente nessa parte mais ampla e profunda de um conceito – a parte que se encontra abaixo da superfície – que encontramos seu verdadeiro valor.

O trabalho de Carter em Pantera Negra é o exemplo perfeito disso.

Por exemplo, vamos olhar para a estampa triangular impressa no uniforme de T’Challa, o príncipe que se tornou rei de Wakanda.

Esta estampa foi inspirada nas estampas de Okavango. Okavango é o nome do maior delta fluvial interior do mundo (quando um rio que não deságua no mar, mas sim, em uma área pantanosa) e fica localizado no norte de Botswana. Esta região é conhecida por servir de santuário para algumas das espécies mais ameaçadas de extinção do mundo, como guepardos, rinocerontes brancos, rinocerontes negros, leões e mabecos (também conhecidos como cães selvagens africanos).

O delta de Okavango é, dessa forma, um símbolo da vida selvagem incrivelmente rica e dos ecossistemas impressionantemente diversos da África. Ele é protegido pela Lei de 1992, conhecida como Botswana’s Wildlife Conservation National Parks Act of 1992, e também por uma política conhecida como Wildlife Conservation Policy.

Deltas têm formato triangular, assim como o continente africano. E isso, de acordo com Carter, faz com que o triângulo seja visto como a “geometria sagrada da África”. Incorporar o formato triangular ao uniforme do Pantera Negra significava ressaltar o status de T’Challa como um verdadeiro rei africano, que tinha o dever legal de proteger a vida e a diversidade de todas as tribos de Wakanda. 

 
 

Não é muito maravilhoso como uma simples forma geométrica pode carregar tanto sentido?

Quer ver outro exemplo? Peguemos, então, o figurino do personagem W’kabi.

Por que o figurino é um cobertor? Por que ele é azul? E o que são aqueles símbolos desenhados no cobertor? Tudo isso tem explicação.

W’Kabi é o líder da Tribo da Fronteira, cuja concepção no filme foi inspirada pelo povo de Lesoto, especificamente, a Tribo Basotho. Lesoto é um reino incrustrado no coração da África do Sul. Trata-se do único país do mundo a ter TODO o seu território situado acima dos 1000 m de altitude (o ponto mais baixo de Lesoto fica a 1400 metros de altitude).  

Por estar localizado numa região alta e montanhosa, onde a temperatura é normalmente mais baixa e mais fria, o povo de Lesotho usa cobertores como parte de sua vestimenta. Assim o fazem os membros da Tribo da Fronteira, que também vivem nas terras mais altas de Wakanda.

A Tribo da Fronteira habita as regiões mais altas porque sua função em Wakanda é vigiar e proteger as fronteiras de ameaças externas. E é mais fácil de se avistar inimigos chegando de longe a partir de um ponto mais alto, de uma posição geograficamente mais elevada. Neste sentido, a Tribo da Fronteira é aquela com autoridade para dizer quem pode e quem não pode cruzar as fronteiras de Wakanda.

Para o americano Ryan Coogler (diretor do filme), autoridade e proteção são tarefas reservadas às forças policiais. E a policia, nos Estados Unidos, usa azul. Além disso, a bandeira de Lesoto possui um tom de azul bastante particular, que representa o céu. Como a Tribo da Fronteira é aquela que vive mais perto do céu e foi inspirada pelo povo de Lesoto, azul foi a cor escolhida para representá-la.

Os desenhos estampados no cobertor de W’kabi são conhecidos como símbolos Adinkra, que podem ser definidos como uma espécie de “sistema de escrita”. Acredita-se que estes símbolos foram criados pelo povo Akan (uma das principais etnias da África Ocidental), no comecinho dos anos 1800, na região que hoje compreende os países de Gana e Costa do Marfim.

Por alguma razão, os símbolos Adinkra me lembram os primeiros e antiqüíssimos caracteres chineses, visto que representam conceitos universais: liderança, força, amor, independência, etc.

Em uma das cenas mais dramáticas do filme, podemos ver os membros da Tribo da Fronteira participando de uma luta sangrenta contra o próprio T’Challa. É uma quebra no status quo. Antes, a Tribo da Fronteira respondia à T’Challa. Agora, está se rebelando contra ele. Os tempos estão mudando e essa batalha é sinal dessa mudança. Enquanto os guerreiros da Tribo da Fronteira posicionam-se um ao lado do outro, usando seus cobertores como escudos, vemos um símbolo em destaque.  É similar ao símbolo Adinkra que significa “mudança” ou “os tempos mudam”.  

 
 

Finalmente, um último exemplo: o lindíssimo chapéu usado pela mãe de T’Challa, Ramonda, rainha de Wakanda.

A primeira vez em que vemos Ramonda no filme é um momento poderoso. Apesar de estarmos sendo apresentados a ela, de alguma maneira, já conseguimos sentir e saber que ela não é uma residente qualquer de Wakanda. À sua direita está Ayo, uma das Dora Milaje (as guerreiras protetoras de T’Challa). À sua esquerda, temos Shuri, a irmã de T’Challa, usando uma camiseta com um símbolo Adinkra que significa “propósito”. E no meio, ela, Ramonda: a rainha.

A gente meio que consegue adivinhar que ela pertence a algum tipo de realeza por causa do manto que repousa sobre seus ombros. Afinal de contas, mantos sempre foram usados como adornos reais, nas mais diversas culturas, deste tempos imemoriais. Mas o que entrega a sua posição como rainha é o seu chapéu. Trata-se da sua coroa. E foi inspirada no Isicholo, que é o chapéu Zulu usado por mulheres casadas na África do Sul.

E quando eu digo que é sua coroa, não é metáfora ou força de expressão. Basta olhar para a imagem abaixo e vocês entenderão o que eu quero dizer.

Quando Ruth Carter criou o Isicholo de Ramonda, ela queria que o chapéu fosse a extensão de uma coroa verdadeira. E ela não poupou esforços para isso. Para se certificar de que o Isicholo usado no filme seria exatamente igual àquele desenhado por ela no papel, Ruth contratou a arquiteta austríaca Julia Körner, uma designer internacionalmente premiada e reconhecida por suas inovações nas áreas de design e impressão 3D. Juntas, elas criaram mais que um chapéu: criaram uma verdadeira obra de arte, usando polímeros que, apesar de serem fortes e resistentes, eram super flexíveis. 

 
 

Agora, sejamos honestos.

Quantos de vocês já sabiam ou tinham consciência de todas essas coisas sobre as quais acabei de escrever? A coroa do Isicholo da rainha Ramonda, a cor do cobertor de W’kabi ou as formas triangulares no uniforme de T’Challa?

Ok, eu primeiro: eu não sabia. Eu não fazia a menor ideia. Verdade verdadeira, eu não tinha consciência de nenhuma dessas coisas.

E ainda assim, mesmo sem eu saber, mesmo sem nós sabermos, tudo estava lá: meses e meses de rigorosas e extenuantes pesquisas, um propósito muitíssimo claro por parte de Carter (ela não estava buscando diversidade africana; mas sim, representatividade africana), e todos os diferentes significados por trás de cada figurino. Todas essas coisas estavam lá.  

E sabem o que mais estava lá?

O impressionante repertório de Carter. Sua experiência sem paralelos. Seu imenso talento. E gigantesco conhecimento sobre design de figurino. Todas as lições aprendidas, memórias e lembranças que ela acumulou ao trabalhar em tantos filmes diferentes, com tantos diretores incríveis. Todas essas coisas também estavam lá.

E é quando a gente combina todas essas coisas, todos esses “ingredientes”, que a gente se dá conta do REAL valor dos conceitos (neste caso, aqueles criados por Carter). A gente não percebe este valor imediatamente. Porque ele não é óbvio. Mas ele está lá. Ah, e como está! E quando a gente se dá conta disso, é como se fôssemos atingidos por um iceberg que usa toda a energia que existe embaixo da superfície para despedaçar nossas percepções. E expandir nossas mentes.

 
Shelton jackson lee a.k.a spike lee

Shelton jackson lee a.k.a spike lee

 
Eu respeito muito a inteligência da platéia; e é por isso que eu nunca miro no mínimo denominador comum.
— Spike Lee, na estréia de seu filme "Bamboozled" (2000)
 

Eu sou daqueles que acredita piamente na noção de que existe algo de muito poderoso, de que existe um poder enorme em expressões artísticas e trabalhos criativos que NÃO são óbvios e que requerem um pouquinho de esforço (e de repertório) para serem plenamente compreendidas.

E este poder é, nada mais, nada menos, que o poder de nos fazer pensar.

De nos encorajar a questionar. De nos motivar a ir atrás de referências e informações que não detínhamos previamente. De nos convidar a refletir sobre coisas e assuntos que jamais havíamos tido coragem de ou interesse em refletir anteriormente. É o poder de fortalecer e afiar nosso pensamento critico. De nos prevenir de nos contentarmos apenas com o mínimo denominador comum.

E ao longo de todos esses processos, eu gosto de pensar que este poder também nos ajuda a nos tornarmos pessoas e seres humanos melhores.

Eu não sei exatamente de onde vem essa habilidade de Carter de criar peças de roupa tão lindas e tão conceituais, que mais se parecem com obras de arte. E não qualquer obra de arte, mas aquela que nos faz pensar.

Digo isso porque seus figurinos definitivamente NÃO são óbvios. Longe disso. Eles são inteligentes. São extremamente bem pensados. São inspiradores. Sempre há uma mensagem escondida em algum lugar. Sempre há coisas que não percebemos assim, de primeira, mas que certamente irão nos maravilhar e nos surpreender se apenas decidirmos fazer um pouquinho de esforço e cavar um pouquinho mais fundo para encontrá-las.

Talvez ela tenha adquirido essa habilidade após anos trabalhando com Spike. Vai saber, né? Se vocês se lembram do final ultra provocativo do filme Faça a Coisa Certa, Spike termina com duas citações que abordam o tema da violência e seu papel no contexto da justiça racial: uma pertence a  Malcolm X, que advoga em favor da violência como forma de auto-defesa) e uma é de autoria do Dr. Martin Luther King Jr., que advoga em favor do protesto pacífico).   

Spike não nos dá uma resposta óbvia. Ele nos convida a pensar a respeito de cada citação, refletir e chegar a nossas próprias conclusões. Como ele disse uma vez, ele se recusa a entregar tudo mastigadinho para seu público, pois isso seria o equivalente a subestimar a inteligência desse público. Eu concordo.

Uma vez eu disse que pensar conceitualmente nada mais é do que pensar sobre os porquês das coisas. O que eu esqueci de dizer é que, neste sentido, pensar conceitualmente é um direito inalienável. E se não for, deveria ser. Todos nós temos este direito. Nascemos com ele e morreremos com ele. E qualquer tentativa de nos privar ou nos proibir de exercer este direito deveria ser severamente admoestada e imediatamente abominada. 

Agora, por que algumas pessoas deliberadamente ESCOLHEM não perguntar “por quê?”, isso eu não sei e acho que nunca vou conseguir entender. Mas até aí, ninguém pode obrigá-las, certo? Afinal, essas pessoas estão no seu direito de escolher não perguntar e não querer saber, né?

Felizmente, temos pessoas como Carter, Canonero, Gaultier, Pasztor e Mabry, para quem perguntar “por quê?” não é uma escolha, mas um impulso quase visceral. É como se eles simplesmente não conseguissem evitar. E digo “felizmente” porque, em suas incansáveis buscas por respostas, algo lindo e mágico acontece: eles encontram propósito para suas criações, dão significado aos seus designs e CRIAM VALOR para seus figurinos.

Que fique claro: esse valor não tem nada a ver com o custo de produção de um determinado figurino (bem, talvez tenha um pouquinho a ver, considerando que o primeiro traje do Pantera Negra custou aproximadamente USD 350.000!). De qualquer maneira, não é deste valor que estou falando. Estou falando de um tipo completamente diferente de valor. 

Estou falando do tipo de valor que, por exemplo, uma faixa-preta (que nada mais é do que um pedaço de pano – baratinho – amarrado em torno da cintura de alguém) possui, tanto dentro como fora do tatame.

Por trás da estética de uma faixa-preta, existe toda uma ética.

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O que eu quero dizer com isso é que uma faixa-preta é algo que demanda um determinado comportamento da pessoa que a usa. Uma faixa-preta simboliza a jornada que essa pessoa teve de atravessar para merecer usá-la. Justamente por causa dessa jornada, uma pessoa portando uma faixa-preta pode ter um efeito bastante específico nas pessoas de seu entorno: amor, admiração, respeito, medo, inveja, etc.  E dependendo do efeito causado, essas pessoas tendem a agir (e/ou a reagir) dessa ou daquela forma.   

Por favor, agora, substituam “Faixa-Preta” por “uniforme do Pantera Negra” e leiam o parágrafo acima novamente. Perceberam onde eu quero chegar?

Figurinos são criados para ajudar os atores a mergulhar em seus personagens e a entregar a melhor performance possível. Eles são concebidos para fortalecer a narrativa do filme. O propósito de um figurino é ajudar a vender a história que está sendo contada na tela. Afinal de contas, quando mais a platéia “comprar” a história, melhor será o desempenho do filme. Mais dinheiro ele irá arrecadar. E mais pessoas o filme irá emocionar. 

É por isso que os figurinos criados por Carter, Canonero, Gaultier, Pasztor e Mabry são tão, tão valiosos: porque eles significam algo para os atores. Eles significam algo para o filme. E  dessa forma, eles acabam significando algo para nós também, a platéia.

Voltando ao comecinho da primeira parte desta série de três posts, a moda – enquanto forma de arte – tem um poder muito particular: as roupas que vestimos externamente são geralmente um reflexo das emoções (ou do estado de espírito) que sentimos ou estamos sentindo internamente. Há muito mais nas roupas que vestimos do que os olhos conseguem ver. E neste sentido, como forma de arte, não dá para ser mais conceitual que a moda. 

Como protagonistas de suas próprias histórias, cada um dos personagens que conhecemos nesta série de posts tinha e fez a sua própria escolha. Malcolm X tinha seu zoot suit. Leeloo tinha seu maiô estilo BDSM. James Dean tinha sua icônica jaqueta vermelha. T’Challa tinha o seu traje de Pantera Negra feito de vibranium.

E você? Como protagonista da sua própria história, qual é a sua escolha?

Qual é a peça de roupa que verdadeiramente reflete quem você de fato é (e não o que as pessoas dizem que você deve ser ou acham que você é)?

Qual é o item de vestuário que você sempre mantém em seu guarda-roupa, e que, na sua cabeça, nunca sai de moda, simplesmente porque significa muito para você, e por isso, tem um enorme valor para você? Compartilhe com a gente nos comentários abaixo. E claro, se não se importar, diga-nos por que ela é sua peça favorita. Eu adoraria saber.

Enquanto vocês pensam a respeito, eu posso contar para vocês qual é a peça de roupa que eu escolheria (e ainda escolho) para vestir uma vez todos os dias e duas vezes aos domingos. A peça que tem sido uma constante na minha vida deste os anos 90.

Vocês provavelmente já sacaram, né? É isso mesmo. Acertaram.

É a minha camisa de flanela xadrez. Por quê?

Porque ... ah, quer saber?

Nevermind. ;o)