Conceito vs. Ideia

Qual a diferença entre um “conceito” e uma “ideia”?

Pegue um dicionário, qualquer dicionário, e você verá que essas palavras são sinônimos.

E são... até certo ponto.

 
 

Digo isso porque um conceito é – de fato – uma ideia.

Mas – pelo menos pra mim – é um tipo muito particular de ideia, uma vez que ela possui, em si, um senso de “FINITUDE” e de “PEREMPTORIEDADE” (olha que palavra chique?... ;o))

Fica mais fácil de entender com um exemplo.

Por exemplo, tomemos o conceito de “AMOR”.

 
 

Enquanto ideia, “amor” é o tipo de ideia fundacional.

Existe algo de definitivo nela.

É uma ideia fundamental.

 

Acho que é exatamente por isso que usamos conceitos para explicar as coisas para as crianças.

É através de conceitos, afinal, que as crianças entendem o mundo ao redor delas.

E algo de super estranho, mas também de muito lindo, acontece quando um conceito é assimilado.

  • De repente, vira um vale-tudo.

  • Não existem mais limites.

  • E toda ideia conta.

Querem ver? Imagine o conceito de “elefante”.

Uma criança que cresceu assistindo a desenhos da Disney provavelmente terá uma “ideia Dumbo” de um elefante.

Já uma criança francesa, por sua vez, provavelmente terá uma “ideia Babar de um elefante.

E claro, temos Dali, que de alguma forma, teve a “ideia Cisne” de um elefante.

 
 

Todos eles estão partindo do MESMO conceito.

Mas todos têm ideias DIFERENTES desse conceito.

 

Neste sentido, uma ideia é como água.

Ela pode ter diversas caras e assumir diferentes formas e contornos.

Porque é fluida, livre e de uma elasticidade contínua e interminável.

 

Acho que o que estou tentando dizer é que (e, de novo, isso é apenas a minha humilde opinião):

 

Uma ideia é... indefinida.

Um conceito é... definido.

 

E essa distinção faz toda a diferença, em termos criativos.

Confira o próximo post para saber por que. (uuhhhh, só no modo “cenas do próximo capítulos”, hein?… ;o))

Até breve!

PS: Ah, antes que eu esqueça: feliz 2023 a todos! É muito bom estar de volta!

Absolutamente Original

Nos últimos tempos, tenho refletido sobre algo que tem tirado meu sono.

Será que nós, como seres humanos, somos capazes de conceber – de forma deliberada e intencional – algo absolutamente original?

Eis o que eu quero dizer por ABSOLUTAMENTE original:

  1. Algo que NÃO seja inspirado ou influenciado por nenhuma referência prévia.
    Deixe-me explicar o que quero dizer. Para mim, “A Noite Estrelada” (1889), de Van Gogh, era o exemplo perfeito do que seria uma obra absolutamente original (visto que eu não entendo quase nada de arte, é fácil entender por que eu pensava assim, né?... ;o)). Até que, em 2005, durante um passeio ao Metropolitan Museum of Art, em Nova York, visitei a exposição “Vincent Van Gogh: The Drawings”, e descobri que ela, na verdade, tinha sido inspirada pela icônica obra do artista japonês Katsushika Hokusai, Great Wave Off Kanagawa (1831). 

  2. Algo que NÃO seja uma mera combinação de outras coisas que já existem.
    Algumas pessoas dizem que um unicórnio é uma criatura original. E até é. Mas, em última análise, um unicórnio nada mais é do que a combinação de um “cavalo” (algo que já existe) e um “chifre” (outra coisa que já existe).

  3. Algo que NÃO seja uma simples evolução de outra coisa.
    Empresas como Uber, AirBnb e Netflix que, de fato, são serviços originais, não podem ser consideradas (pelo menos, aos meus olhos) ABSOLUTAMENTE originais porque, em essência, eles são apenas uma evolução dos já conhecidos serviços de taxi, de hotel e de locadoras de vídeo.

Notem que minha pergunta não foi se somos capazes de INVENTAR ou de DESCOBRIR algo absolutamente original. Isso a gente consegue. Claro que consegue.

Algumas vezes, essas invenções e descobertas acontecem por acidente: a gravidade (Isaac Newton), a penicilina (Alexander Flemming) e, claro, a maior de todas as invenções, o Kickflip (Rodney Mullen), são exemplos perfeitos disso.

Outras vezes, elas acontecem de forma deliberada. Não preciso nem listar, né? Há incontáveis exemplos, que vão desde a invenção do telefone (Graham Bell) até a descoberta da estrutura do DNA (Rosalind Franklin, James Watson e Francis Crick).

A minha pergunta tem a ver com CONCEITOS.
Conceitos sui generis, seminais e sem precedentes.
Será que, como seres humanos, somos capazes de sequer idealizá-los?
Será que somos capazes de pensar no impensável?

Parte de mim tende a acreditar que se somos capazes de conceber as ideias que existem por trás de expressões e adjetivos como “sui generis”, “seminais” e “sem precedentes”, isso quer dizer que provavelmente também sejamos capazes de pensar em coisas que representem ou equivalham a essas ideias.

Mas daí, a outra parte de mim imediatamente diz:

“Ah é? Ok.
Então, pense em algo impensável.
Vai! Bora lá!
Não consegue né?
Até porque, se conseguir, então... não é impensável.”

O motivo pelo qual eu comecei a refletir sobre essas questões é que parece que TUDO que nós, como seres pensantes, somos capazes de idealizar ou conceituar não só já existe como também JÁ ESTÁ LÁ – de uma forma ou de outra. É como se, na falta de uma palavra melhor, fosse algo já DADO e pré-estabelecido. Algo que está lá, flutuando no éter, como parte da nossa existência, regendo e/ou influenciando nossas vidas, em maior ou menor grau. Às vezes, a gente nem vê essas coisas, mas conseguimos sentí-las. E, aparentemente, isso é evidência suficiente para que possamos conceituá-las.

Por exemplo, o TEMPO.

O tempo, enquanto conceito, é auto-evidente. Aliás, eu às vezes me pergunto quem foi a primeira pessoa a sentir o progresso indefinido e contínuo da existência, identificá-lo como “algo”, e finalmente, decidir chamá-lo de “tempo”.

Para mim, “tempo” pode ser considerado um conceito absolutamente original, no sentido de que, até onde minha compreensão consegue alcançar:

  1. Ele não foi inspirado por nenhuma referência prévia.
    Na verdade, é meio que o contrário: tempo é a referência por trás de conceitos como a teoria da relatividade, aniversários, etc.

  2. Não é uma mera combinação de outras coisas que já existem.
    Anos, meses, dias, horas e segundos foram inventados por nós – supostamente pelos egípcios e babilônios – como uma forma de compreendermos e fazermos sentido do conceito de tempo, e não o contrário.

  3. Não é uma evolução de outra coisa.
    Eu não consigo nem conceber o que poderia ter vindo antes do tempo em si, e o que poderia ter evoluído e se tornado o tempo tal qual o conhecemos.

Agora, três perguntas me vêm à mente:

Os humanos inventaram o tempo? Não.
Os humanos descobriram o tempo? Talvez.
Os humanos transformaram “tempo” em um conceito? Sim.

Vejamos mais um exemplo: PODER.

“Poder” é outro conceito que, pelo menos pra mim, é absolutamente original, uma vez que:

  1. Ele não foi inspirado por nenhuma referência prévia.
    Na verdade, parece ser o contrário: das pinturas mais antigas já encontradas nas paredes de cavernas, mostrando humanos caçando animais, às batalhas mais recentes travadas no The International Dota 2 Championships, “poder” parece ser A grande referência e a fonte de inspiração definitiva.

  2. Não é uma mera combinação de outras coisas que já existem.
    Alguns podem argumentar que se combinarmos coisas como dinheiro, sexo e influência, o resultado final será poder. Eu tendo a discordar. Para mim, dinheiro é apenas uma FORMA de poder. Sexo, idem. E influência, mais ainda. 

  3. Não é uma evolução de outra coisa.
    Na realidade, poder é um conceito tão seminal que áreas inteiras derivaram dele: política, religião, leis, esportes, negócios, etc.

Obviamente, as mesmas três perguntas me vêm à mente de novo:

Os humanos inventaram o poder? Não (as lutas entre animais pelo direito de acasalar é prova cabal disso).
Os humanos descobriram o poder? Talvez.
Os humanos transformaram “poder” em um conceito? Sim.

Em ambos os casos, foi facílimo responder à primeira questão.
É muito claro para mim: não, nós não inventamos o “tempo”.
E não, nós não inventamos o “poder”.

Por outro lado, neste exato momento em que escrevo essas palavras, a resposta para a segunda questão ainda permanece um pouco nebulosa para mm. Não consigo me decidir se descobrimos ou não o “tempo” e o “poder”. Sobretudo por causa do verbo descobrir e tudo que ele compreende.

Sinto-me mais inclinado a dizer que, ao longo de nossa existência enquanto seres humanos, sempre sentimos – mesmo que intuitivamente – a passagem de “algo” (no caso do tempo) e o fascínio e sedução de outro “algo” (no caso do poder).

Além disso, acredito que a gente sempre conseguiu sentir que esses “algos”, essas “coisas”, independente de quão intangíveis fossem, tinham um impacto super concreto e tangível em nossas vidas. E mesmo que a gente conseguisse – talvez – “explicar” o que o primeiro algo e o segundo algo fossem, a gente provavelmente não sabia como chamá-los. Até que um belo dia, um de nós finalmente conseguiu apontar o dedo pra cada uma dessas “coisas” e encontrou uma forma de “rotulá-las”, dando-lhes um “nome”.

E assim, do nada, começamos a chamar a primeira coisa de “tempo” e a segunda coisa de “poder”.
Isso significa que nós os descobrimos?

Como eu disse...talvez.
Mas por que talvez?

Porque descobrir algo significa tirar a cobertura de algo que estava anteriormente coberto. Significa trazer esse algo à luz. Em última análise, descobrir algo significa TOMAR CIÊNCIA de sua existência. E por alguma razão, eu acredito que a gente sempre teve alguma ciência da existência do “tempo” e do “poder”.

De alguma forma, em algum nível, sabíamos que essas “coisas” estavam lá.


Descobrir Algo Implica Não Se Ter Ciência da Existência Desse Algo

Para mim, descobrir algo seria, por exemplo, trazer à luz o estilo de vida da tribo nativa de Sentinela do Norte.

Completamente isolada do resto do mundo, e protegida pelo governo indiano, esse pedacinho de terra localizada na Baía de Bengala é parte do arquipélago das Ilhas Andaman, além de ser um dos lugares mais misteriosos do planeta, visto que ninguém sabe o que acontece nas entranhas das densas florestas que cobrem a Ilha de Sentinela do Norte.

Como eles vivem? Que língua falam? Quantos habitantes compõem a tribo? Eles sabem fazer uso do fogo? Como será que são suas “casas”? E – esta pergunta é realmente intrigante – como raios eles sobreviveram ao tsunami de 2004, que matou mais de 200.000 pessoas? Será que foi graças ao uso de alguma tecnologia completamente inovadora da qual nós, do mundo “civilizado”, sequer temos ideia?

Ninguém sabe.

Na boa...não é uma loucura? Em um mundo em que seres humanos já chegaram aos extremos mais altos do espaço sideral e aos pontos mais profundos da Terra (Fossa das Marianas), até hoje, tudo que afirmamos saber sobre a Sentinela do Norte não é nada mais do que um mero chute. E quer saber? Espero que continue assim para sempre, pelo bem dos Sentinelenses. ;o)

Agora, digamos que algum dia, todos esses mistérios sejam desvendados e todas essas questões sejam respondidas. E assim, de repente, não mais que de repente, descubramos que os Sentinelenses do Norte não se comunicam através do som, mas através da visão.

Parece improvável, eu sei, mas não é impossível.

Sobretudo quando consideramos o fato de que seus “parentes” do Mar de Andaman, o povo Moken (sobretudo, as crianças Moken), possuem a incrível habilidade de reduzir suas pupilas e mudar o formato das lentes de seus olhos, o que lhes permite enxergar tão bem debaixo da água quanto fora dela. Quem sabe, devido a alguma mutação, as pessoas da região de Andaman sejam geneticamente estruturadas para terem um controle sobrehumano sobre suas funções oculares.

Sabem como a gente arregala os olhos quando levamos um susto ou quando os estreitamos quando estamos com nojo de algo? Quando fazemos isso, essencialmente, estamos nos comunicando com nossos olhos. Neste exemplo, estamos comunicando duas emoções bem particulares. Agora, basta usar o mesmo raciocínio e imaginar a situação hipotética em que alguém (por exemplo, os Sentinelenses) seja capaz de comunicar absolutamente TUDO usando apenas seus olhos, controlando todas as funções: da cor à íris e da pupila às lentes.

Imaginem isso por um segundo.

Algo que a gente não sabia que existia – a comunicação através da visão – de repente passa a fazer parte do nosso repertório de “experiência humana”, a partir do momento em que ganhamos ciência do fato de que seres humanos conseguem falar um com o outro usando apenas a visão.

ISSO sim, seria uma descoberta e tanto.

É o mesmo com as Pirâmides do Egito.

Como elas foram construídas? Inacreditavelmente, ninguém conseguiu chegar a uma resposta definitiva sobre este assunto. Não é absurdo? Já conseguimos enviar sondas a Marte, mas ainda não conseguimos entender como uma das Sete Maravilhas do Mundo Antigo foi erguida. A maioria das elocubrações gira em torno de alguma solução de engenharia inédita, antiga e desconhecida.

Mas talvez não seja nada disso. Talvez o segredo esteja nos blocos de pedra. Literalmente. Já pararam para pensar nisso? Talvez os egípcios conhecessem alguma fórmula química maluca que permitia que eles temporariamente transformassem pedras em algo muito, muito mais leve, como por exemplo, algum tipo de “esponja”, que depois voltariam a se tornar pedras.

Sabem como somos capazes de pegar blocos de gelo e, dependendo das condições em que os manipulamos, conseguimos transformar esses blocos de gelo em gás? E daí, depois, dependendo de como lidamos com esse gás, e de certas condições de temperatura e pressão, podemos transformar esse gás novamente em algo sólido? Talvez os egípcios soubessem fazer a mesma coisa com pedras. Talvez eles soubessem como transformar essas pedras em algo muito, muito mais leve. Vai saber, né? Por ora, só nos resta especular.

Eu sei que estou soando como um doido varrido.

Mas vocês conseguem imaginar o quão legal seria se, um dia, arqueologistas descobrissem um antiqüíssimo manuscrito enterrado nas areias do Egito? E nele, houvesse uma equação matemática, que nos ensinaria a transformar minerais duríssimos em esponjas super macias, mais ou menos da mesma forma em que transformamos pesadíssimos blocos de gelo em gás “sem peso”.

Imaginem isso por um segundo.

Algo que a gente não sabia que existiauma fórmula que transforma pedras em esponjas – de repente passa a fazer parte do nosso repertório de “experiência humana”, a partir do momento em que ganhamos ciência do fato de que seres humanos conseguem “transformar minerais pesados em esponjas leves e aeradas”

ISSO sim, seria uma descoberta e tanto.

Por isso eu digo que TAAALVEZ a gente tenha descoberto o “tempo” e o “poder”.
Porque eu acredito que nós, como seres humanos, sempre tivemos ciência da existência do “tempo” e do “poder” (mesmo que apenas em uma escala empírica e/ou intuitiva).
E descobrir algo implica necessariamente NÃO TER CIÊNCIA da existência de algo.

Ah, e só para constar, esta minha linha de pensamento parte da premissa de que os atos de se “DESCOBRIR algo” e de se “ENCONTRAR algo” são coisas completamente diferentes, uma vez que o segundo (aos meus olhos) implica TER CIÊNCIA prévia (mesmo que apenas por meio de rumores) da existência de algo.


Conceitos são o jeito da mente humana simplificar o mundo ao seu redor.
— Edward de Bono

Bom, se a gente não inventou o “tempo” e nem o “poder”, e também não os descobrimos, como é então que essas coisas vieram a se tornar... “coisas”? E como é possível que a gente consiga pensar sobre essas coisas - sobre “tempo” e “poder” -, falar sobre elas e compreendê-las da mesma forma que fazemos com coisas como “árvores”, “pirâmides”, “ilhas” e “cavalos”?

Simples. Nós as conceituamos.

Como já establecemos, eles podem ser considerados conceitos absolutamente originais.
Mas também estabelecemos que “tempo” e “poder” DE FATO existem.
E não apenas isso: temos ciência dessa existência.

O que me leva a duas outras questões que também têm me mantido acordado:

  1. No tocante a conceitos absolutamente originais, será que somos capazes apenas de conceber aqueles que, de fato, já existem?”

  2. E “será que precisamos, obrigatoriamente, ter ciência da existência desses conceitos absolutamente originais, para que sejamos capazes de concebê-los”?

O que vocês acham?

Digamos que a resposta para ambas as perguntas seja SIM.

Bom, se for verdade que, como seres humanos, só somos capazes de conceber (e de novo, estou falando EXCLUSIVAMENTE sobre conceitos absolutamente originais) coisas que, de fato, já existem; e de cuja existência temos ciência, então talvez a seguinte conclusão também seja verdadeira: “se conseguimos conceber, então é porque COM CERTEZA existe”.

Agora, digamos que a resposta para ambas as perguntas seja NÃO.

Bem, então neste caso, a conclusão de Lavoisier em sua obra-prima de 1789, “Tratado Elementar da Química” provavelmente não está inteiramente correta (eu estou sendo diplomático aqui, e propositadamente evitando a palavra “errada”... ;o)). Eis o que ele disse no capítulo XIII:

 
 
(…) em todas as operações da arte e da natureza, nada é criado; (…) e nada ocorre além de mudanças e modificações.
— Antoine Laurent Lavoisier
 

Em outras palavras, Lavoisier afirma que não conseguimos – nem que quiséssemos – CRIAR nada; pelo menos, não assim, “do nada”. Nós conseguimos, sim, pegar o que já existe e usá-lo como “tijolinhos de construção”, para assim, “criar” algo novo.

Por exemplo, somos capazes de pegar o conceito absolutamente original da “mulher”, o conceito absolutamente original do “peixe”, e criar o conceito de sereia. Mas não conseguimos criar novos tijolinhos de construção. E quer saber? Pessoalmente, às vezes eu me pergunto se somos capazes de sequer CONCEBER esses novos tijolinhos de construção que ainda não existem, quiça criá-los.

Eu não gosto muito de entreter a ideia de que seres humanos não sejam capazes de conceber... vamos chamá-los de “tijolinhos conceituais de construção” inéditos, sem precedentes e seminais. Porque se isso for verdade, então significa que todos os tijolinhos que já existem são DADOS. E a nós, só nos resta brincar de análise combinatória. E meu lado criativo tem a maior dificuldade do mundo em aceitar isso.

Não me importa se o número de combinações que sejamos capazes de criar for maior que mol (estou me referindo àquele número ridiculamente alto que aprendemos na aula de química: 6,02 x 10 elevado à potência de 23). Aliás, não me importa nem se este número for maior que mol fatorial (apesar de que, eu admito, este seria um número alto pacas…;o)). 

Sendo completamente honesto com vocês, mesmo se o número de combinações fosse infinito, a ideia de que passaremos o resto de nossa existência apenas “brincando com um ‘kit Lego’ que já possui um número definido de tijolinhos conceituais” ao invés de sermos capazes de concebermos, inventarmos e depois, adicionarmos novos tijolinhos a este kit Lego não me cai bem, por alguma razão.

Mas até aí, quem sou eu para falar ou questionar alguma coisa? Eu sou o primeiro a admitir que meu conhecimento sobre conceitos e tudo aquilo que pertence ao mundo das ideias é muito pequeno e extremamente limitado.

Por isso, nada mais razoável do que pedirmos a ajuda dos mestres.

Por favor, uma salva de palmas para os campeões invictos dos conceitos e das ideias!

No canto esquerdo, diretamente das terras altas e colinas da Escócia, temos ele, o único, o inigualável David Hume, também conhecido como “O Empiricista”.
No canto direito, ele: o “Homem das Cavernas”, criador do mais famoso “Teatro das Sombras” do Ocidente, diretamente da Grécia Antiga... PLATTTTÃÃÃOOOOOO.

Quem levará o cinturão para casa?
E quem será o grande derrotado?
Bem, não precisamos nem assistir a essa luta, gente.
Claramente, o derrotado sou eu, uma vez que eles dois acreditavam na premissa de que a vida é feita de um número dado e definido de “tijolinhos conceituais de construção”.

Platão chama esses tijolinhos de FORMAS (às quais nós temos acesso graças a uma visitinha que fazemos ao mundo das ideias antes de nascermos).
Hume, por outro lado, chama esses tijolinhos de IMPRESSÕES (às quais nós temos acesso única e exclusivamente através da experiência).

Seja lá como for, o que importa é que eles – os mestres inegáveis e incontestáveis –, juntamente com Lavoisier, parecem concordar com o fato de que nós, como seres humanos, NÃO SOMOS CAPAZES de, deliberadamente e intencionalmente, dar origem a esses tijolinhos conceituais de construção.

Se isso for realmente verdade, seria incrivelmente triste. Sem falar que seria uma derrota monumental para todos aqueles que buscam originalidade, se alimentam de criatividade e são pensadores conceituais em sua essência e acima de tudo.

Pense comigo: imagine se dar conta de que todo trabalho criativo e qualquer expressão artística será, sempre, inevitavelmente, algo derivado de outra coisa.... Não é decepcionante? Digo, no sentido mais fundamental e conceitual possível.

Claro que a gente sempre poderá apreciar a técnica do artista, podemos nos deixar inspirar pelo seu trabalho e nos emocionarmos com sua obra. Mas estritamente do ponto de vista conceitual, sempre haverá uma parte em nós que dirá: “mmm, acho que já vi isso em algum lugar” ou “isso me soa familiar”.

Sabem quando eu tenho essa sensação?

Toda santa vez em que assisto a um filme de ficção científica.


Conceitos (Não Tão) Alienígenas

Tente lembrar de qualquer filme de ficção científica a que você já tenha assistido.

Pense nas criaturas alienígenas desses filmes. Estamos falando de seres de outros mundos e outras dimensões. Eles não parecem sempre um tanto quanto familiares?

Dos clássicos como “Alien – O Oitavo Passageiro”, de 1979 e dirigido por Ridley Scott até os mais recentes, como “A Chegada”, de 2016 e dirigido por Dennis Villeneuve.


Dos seres bizarros nascidos na mente do diretor mexicano Guillermo Del Toro (“Hellboy” em 2004, “O Labirinto do Fauno” em 2009 e “Círculo de Fogo” em 2013) àqueles concebidos na mente do diretor sul-africano Neil Blomkamp em “Distrito 9”, de 2009.


Das criaturas nojentas e gosmentas que vemos no hilário filme B de terror “O Ataque dos Vermes Malditos”, de 1990, dirigido por Ron Underwood ao fofo protagonista de “ET – O Extraterrestre”, de 1982, dirigido por Steven Spielberg.


De uma forma ou de outra, em maior ou menor grau, é como se conseguíssemos RECONHECER algo neles, ou seja, é como se já os tivéssemos visto antes. Para começo de conversa, a maioria deles tem “cabeças” e “membros”. Além disso, a maioria também tem uma forma humana, visto que andam sobre dois membros, geralmente tem dois braços e são (pelo menos, no que diz respeito à estrutura externa) bilateralmente simétricos.

E mesmo quando esses seres não dividem semelhanças e similaridades com seres humanos, eles o fazem com outros animais que todos nós conhecemos.
Alguns se parecem com camarões gigantes (Distrito 9).
Outros se parecem com lulas gigantes (A Chegada).
E ainda há aqueles que se parecem com vermes gigantes (O Ataque dos Vermes Malditos).

Viram? O simples fato de eu conseguir jogar as “ideias” de camarão, lula e verme é prova de que, conceitualmente, o design dessas criaturas NÃO é absolutamente original.

Já ouviram falar de um livro conhecido como “O Livro Mais Estranho do Mundo”?

Chama-se “Codex Seraphinianus”. É uma espécie de enciclopédia que descreve e mostra seres vivos de um mundo desconhecido e imaginário. O livro foi criado e ilustrado pelo arquiteto e artista italiano Luigi Serafini, entre os anos de 1976 e 1978.

 
 

Não vou mentir pra vocês: para um livro que detém o título de “O Livro Mais Estranho do Mundo”, eu fiquei meio...decepcionado. Sim, ele é original. E sim, ele é maravilhosamente ilustrado. Mas de um ponto de vista estritamente conceitual, fiquei com a impressão de que o que cada página nos oferece nada mais é do que uma série de desenhos que representam, mais ou menos, o que David Hume chama de IDEIAS COMPLEXAS.

Em outras palavras, Serafini pegou um monte de “ideias simples” (como Hume as chama) e as combinou de maneiras esquisitas, inesperadas e inusitadas. É isso.

Falando em Codex, existe outro livro, comumente chamado de “O Codex Mais Misterioso do Mundo”, cujo título oficial é O Manuscrito Voynich.

Estudiosos acreditam que tenha sido escrito no século XV (até hoje, sua autoria continua sendo um mistério), e contém aproximadamente 234 páginas que abordam assuntos que vão desde botânica até astronomia, e tudo o mais que se refere ao mundo natural. O que significa que, grossíssimo modo, o livro fala sobre coisas que já existem na Natureza, do jeito que a conhecemos (ou a conhecíamos, mais ou menos 600 anos atrás).

Conceitualmente falando, no que diz respeito a tijolinhos conceituais de construção, no tocante às formas (no linguajar de Platão) e às impressões (usando o glossário de Hume), não há nada de absolutamente original em nenhum dos dois livros supracitados. Nada de realmente novo foi deliberadamente cconcebido. Nem no “Livro Mais Estranho do Mundo” e nem no “Codex Mais Misterioso do Mundo”.

Uma pena.

 
 

Tijolinhos de Lego Conceituais

Eu lembro de um dia, quando ainda estava na minha adolescência, de ter perguntado a um amigo meu que tocava violão “quantas notas e acordes existiam e se todas as notas e acordes já haviam sido inventados”.

Na época, eu estava pensando em ter aulas de violão e quando fiz esta pergunta, eu estava basicamente fazendo umas contas na minha cabeça para saber quanto tempo eu levaria para aprender a tocar todas as notas e todos os acordes. Inconscientemente, no entanto, em um nível mais profundo, o que eu realmente queria saber era se a quantidade de notas e acordes era LIMITADA.

Por alguma razão, algo em mim queria (ou melhor, PRECISAVA) saber se era possível alguém conceber uma nota ou um acorde que jamais havia sido ouvido, tocado ou concebido antes. Eu não sabia por que me sentia tão intrigado por essa pergunta, mas eu me lembro da resposta do meu amigo: “sim, todas as notas e acordes possíveis já foram inventados e já existem”.  

Em outras palavras, o que ele estava me dizendo é que – fundamentalmente, no nível mais conceitual – nós, seres humanos, já havíamos chegado ao fim da nossa análise combinatória musical. E naquele mesmo instante, lembro que qualquer desejo que eu poderia ter de aprender violão desapareceu. É como se, de repente, eu tivesse perdido toda a vontade. Eu simplesmente perdi o interesse em aprender a tocar violão. Estranho, né?

Bom, de toda forma, existe um prêmio de consolação reservado a todos nós, criativos em nossa busca incessante pela originalidade absoluta: parece que, pelo menos, o número de combinações que os seres humanos são capazes de criar com a limitada quantidade de notas e acordes em existência É, de fato, ilimitado. Como um fã de música, um aficcionado por rock & roll e um entusiasta do hip-hop, eu agradeço a Deus todos os dias por isso. ;o)

Quanto mais eu penso na nossa:

impressionante habilidade de dar origem a um número aparentemente infinito de criações a partir de um kit de lego que possui um número dado e limitado de tijolinhos conceituais
vs.
nossa completa incapacidade de sequer conceber UM ÚNICO tijolinho conceitual novo,

mais desafiado eu me sinto a provar que a segunda hipótese é falsa.

E mais derrotado eu me sinto toda vez em que eu falho em prová-la.

 

É inacreditavelmente fácil eu me perder em minhas “viagens”, onde eu me pergunto coisas como:

  • “Quem disse que a vida em outros planetas é ou deveria ser como a vida tal qual a conhecemos na Terra? Talvez a gente já tenha descoberto vida em outros lugares, mas simplesmente ela não se parecia com aquilo que nós esperávamos que ela fosse e/ou não preenchia certos requisitos que nós, de maneira um tanto quanto arrogante, estabelecemos. Talvez a vida fora da Terra exista de formas que nós ainda sequer consigamos conceber”.

  • “Por que toda criatura alienígena em filmes de ficção científica têm algum tipo de “corpo”? Ou por que eles sempre são apresentados com um tipo de “organismo”, mesmo quando o são na forma de um vírus alienígena? Talvez não devêssemos pensar neles em termos de um “organismo”. Talvez criaturas alienígenas sejam algo completamente diferente.”

  • “Será que todo composto químico é ou orgânico ou inorgânico? Não seria possível existir uma uma terceira opção, totalmente distinta dessas duas primeiras?”

  • “Ao invés de pensar se existiria um outro estado da matéria (liquido, gasoso, sólido e plasma), não dá para conceber “outra coisa” acontecendo com a água, por exemplo? Vamos deixar essa coisa de mudança de estado de lado, por um segundo. Aliás, vamos esquecer completamente essa coisa de “estado da matéria”. Será que não daria pra gente conceber outra coisa QUE NÃO SEJA aquilo que hoje conhecemos como “estado da matéria”?”

Essas perguntas me fascinam de formas que nem consigo começar a explicar para vocês. É super divertido pensar sobre elas. É extremamente motivante entreter essas reflexões. Mas toda vez que eu me engajo neste tipo de questionamento, nem um milésimo de segundo depois, minha cabeça faz uma pergunta (e é sempre a mesma pergunta):

“Sim, claro! Tipo o quê?”

E essa pergunta – ESSA PERGUNTA – quebra minhas pernas toda vez, simplesmente porque, até hoje, eu nunca consegui achar uma resposta para ela. Essencialmente, para respondê-la, eu teria de ser capaz de conceber novos “tijolinhos conceituais de construção”, ou em outras palavras, eu precisaria ser capaz de pensar em “tijolos de Lego conceituais” absolutamente originais. E infelizmente, eu não o sou. Deus sabe o quanto eu tentei e o quanto eu continuo tentando. Mas mesmo que minha vida dependesse disso, eu admito que não consigo.  

Bem, então, talvez, os mestres estejam certos.
Talvez tudo que nos resta a fazer é brincar de Lego.
Talvez, como seres humanos, não tenhamos sido feitos para sermos capazes de conceber novas FORMAS (na linguagem de Platão).
Talvez não caiba a nós tentar conceber novas IMPRESSÕES (na linguagem de Hume).

Mas nem tudo está perdido, já que nós temos uma última carta na manga: nós podemos atribuir novos SIGNIFICADOS a todo e qualquer conceito dado e existente.

A “forma de uma árvore” nos foi dada?
E daí?
Isso não significa que sejamos obrigados a sempre ver uma árvore, no sentido de planta. Eu posso olhar para uma árvore e enxergar a “genealogia da minha família”, se eu assim quiser. Eu posso pensar em uma árvore e ver um monte de “presentes de Natal”. Eu posso enxergar o “lugar onde crianças brincarão de balanço”. A árvore pode significar um monte de coisas diferentes para mim.

A “impressão de vermelho” é um dado?
E daí?
Isso não significa que eu seja obrigado a sempre enxergar o vermelho, enquanto cor. Vermelho pode significar muito mais que isso. Pode significar amor. Pode significar raiva. Pode significar estar “viajandão” depois de se fumar um baseado. Pode significar estar apaixonado. Pode significar “Ferrari”. Pode significar vida, no sentido de sangue. Na verdade, cabe apenas a nós atribuir novos significados à impressão de vermelho.

Quando eu penso nisso, como num passe de mágica, minha necessidade de conceber novos “tijolinhos conceituais de lego” é (um tiquinho... ;o)) aplacada.

Afinal, se eu não puder ser capaz de dar origem a conceitos absolutamente originais, a não ser que:

  1. eles já existam e

  2. eu tenha ciência da existência deles

(e mesmo quando estes dois requisitos são preenchidos, eu ainda não tenho tanta certeza de que seria capaz de fazê-lo deliberadamente e intencionalmente),

então, quem sabe, eu possa almejar fazer a coisa mais próxima disso.

Eu posso simplesmente ressignificar os conceitos que já existem.
Eu posso atribuir novos significados a eles.
E ao fazer isso, eu posso – mesmo que maneira extremamente superficial e beirando o imperceptível – reconceituá-los, por assim dizer.

Quando começamos a ver as coisas por esse ângulo, as possibilidades SÃO verdadeiramente infinitas.

Então, vamos tentar uma coisinha aqui, pode ser?
Lembram dos exemplos que usamos antes, no início desde post? Sobre como “Tempo” e “Poder” podem ser considerados conceitos absolutamente originais?

Vamos ver se somos capazes de atribuir novos significados a eles.

Todos nós conhecemos aquela frase que diz que  “tempo é dinheiro”, certo? O Zeitgeist em que vivemos nos ensinou que tempo significa dinheiro. Mas e se ele significasse outra coisa? Ao invés de “tempo é dinheiro”, e se a gente ressignificasse o conceito de tempo, trazendo-o de volta ao que ele realmente é (e, a bem da verdade, sempre foi): grátis.

De repente, se nosso ponto de referência for o fato de que “o tempo é gratuito”, então isso significa que é algo que dinheiro não pode comprar. E não apenas isso. Se ele é gratuito, então que tal se nós o déssemos para o próximo. Generosamente. Abundantemente. Incondicionalmente. Seria demais, não?

Quanto ao conceito de poder, ninguém jamais o entendeu de forma tão precisa quanto nosso amigo alemão Friedrich Nietzsche.

Em sua obra, Der Wille Zur Macht, o filósofo alemão descreve o poder como uma espécie de força motriz que basicamente rege todas as nossas ambições, nossos desejos e nossas motivações individuais. E de um ponto de vista puramente empírico, acho que não dá pra nenhum de nós discordar dele, né? Infelizmente, poder É algo comumente associado ao “indivíduo”, na pior das hipóteses, ou “a poucos”, na melhor das hipóteses.

É sempre “o que EU quero”, “quando EU quero”, “do jeito que EU quero”.

Agora, e se a gente pudesse mudar essa ideia que temos de “poder”, e ao invés de associá-lo ao “indivíduo”, poder passasse a significar “coletivo”. Já imaginaram isso?

E se nós fôssemos capazes de ressignificar o conceito de poder através da lente da “Lei de Jante”, uma construção literária criada por Aksel Sandemose em seu livro de 1936 A Fugitive Crosses His Tracks, e que se tornou uma espécie de código de conduta da sociedade escandinava? Talvez assim, a gente teria uma interpretação diferente do conceito de poder.

Talvez, ele passaria a significa o que NÓS queremos, quando NÓS queremos e do jeito que NÓS queremos.

Imaginem se fôssemos capazes de atribuir estes novos significados a conceitos absolutamente originais como “tempo” e “poder”. Talvez seríamos finalmente capazes de conceber um novo mundo também – um que fosse melhor para todos nós – e de usar todo nosso tempo e poder para construí-lo.

Isto dito, se vocês me perguntassem, eu diria que ser capaz de reconceituar o mundo tal qual o conhecemos hoje, transformando-o em um lugar melhor e mais pacífico para todos nós valeria MUITO mais do que, de alguma forma, ser agraciado com o dom divino de dar origem a conceitos absolutamente originais.

Quanto mais? Bem, aproximadamente “mol fatorial” vezes mais.

No mínimo. ;o)

Moda Conceitual (Parte 3/3)

No último post, apresentamos Milena Canonero e falamos sobre como, na minha opinião (ou seja, de alguém que não entende muito de moda e nem de cinema), o seu trabalho em Laranja Mecânica continua sendo, de longe, o melhor. Não apenas por ser o mais original, mas principalmente por ser o mais conceitual.

O que não deveria ser surpresa.

Para Canonero, o conceito é – e sempre foi – prioridade. Ela mesma disse isso.

Mais ou menos 4 anos atrás, do alto de seus 71 anos, Milena foi homenageada com o Honorary Golden Bear de 2017 pelo conjunto de sua obra, durante a 67ª edição do Festival Internacional de Cinema de Berlin (Berlinale). Na coletiva de imprensa, em seu discurso de agradecimento, ela surpreendeu a todos dizendo o seguinte:

“O que me interessa de verdade não é o figurino em si.
O que me interessa é o CONCEITO.”

Assistam ao vídeo abaixo e veja a reação do público. Alguns começam a rir, mal acreditando no que tinham acabado de ouvir. Se vocês prestarem atenção, há até mesmo um jornalista de queixo caído, com a boca literalmente aberta.

Pensando bem, faz sentido que o público tenha reagido dessa forma.

Afinal, ali estava Canonero, sendo homenageada por seu trabalho com figurinos, e ela vem e diz que o que importa realmente para ela NÃO são os figurinos.
Diz que, na verdade, é outra coisa.
O conceito.

Considerando sua extensa e longeva carreira, seu vastíssimo conhecimento e sua imensa experiência, a afirmação de Canonero de que ‘o que me interessa é o conceito’  soa como o tipo de conclusão definitiva que só pode ser alcançada após décadas trabahando e aprendendo com alguns dos maiores diretores da história. Quase como uma pérola de sabedoria que demora uma vida inteira para ser forjada.

Pois é. Mas não é o caso.

Como eu disse no começo deste post, o conceito SEMPRE foi prioridade para ela. Esta sempre foi sua abordagem: seguir o conceito acima de tudo.

“Não é o figurino em si que eu gosto de criar.
Lógico que é interessante, mas o que me atrai, de fato, é
o significado (por trás do figurino).
(O figurino) cumpre um
propósito.
(E por isso) temos que
SEGUIR O CONCEITO”.

Essas são as palavras de uma jovem Canonero, numa entrevista para o site Facineshion.com, em que ela nos conta mais sobre seu processo criativo e também sobre o guarda-roupa que criou para o primeiríssimo filme em que trabalhou: o inacreditável Laranja Mecânica.

Em outra palavras, desde o comecinho da sua carreira, sua forma de pensar já era 100% conceitual. E foi exatamente essa forma de pensar que a levou a criar um dos figurinos mais icônicos de todos os tempos: o uniforme da Gangue dos Droogs.

Indecentes.
Enlouquecidos.
Perturbadores.
Inquietantes.

Essas foram as palavras que me vieram à mente quando bati os olhos – pela primeira vez – nos trajes da Gangue dos Droogs. Coincidência ou não, essas também foram as palavras que melhor descreviam o comportamento psicótico e violento dos membros da gangue.

A mer ver, a escritora Lynn Hlaing, da F@B - Fashion at Brown (uma organização estudantil dedicada a trazer a moda para a comunidade da Brown University) foi quem deu a melhor descrição. Segundo ela, o figurino de Canonero no filme era uma “estranha fusão entre depravação e classe”, que “brincava com elementos de rebeldia e conformidade”, e tinha um ar “sombrio e nefastamentee carismático”.

Putz. Isso, sim, é uma descrição! Bem dito, Hlaing.

Se Canonero nos diz que temos que seguir o conceito, então, obviamente a pergunta que se segue é: ok, e qual é o conceito por trás de Laranja Mecânica?  

Segundo um artigo publicado pela revista New Yorker, e escrito em 1973 pelo próprio Anthony Burgess (ele é o autor do livro Laranja Mecânica, que Kubrick transformou em filme), o conceito era o poder da escolha (vocês podem ler o artigo completo aqui).

Particularmente no caso do livro, Burgess está se referindo à escolha entre “o livre-arbítrio do indivíduo” versus os “padrões de conformidade impostos por um Estado que tem o ‘bem coletivo’ em mente”. Existe uma dualidade aqui. Por um lado, temos o cidadão. Por outro, um “Estado que vai longe demais, adentrando uma área que vai além do pacto estabelecido com o cidadão”, como diz o próprio Burgess.

Essa dualidade pode ser vista em cada centímetro do figurino criado por Canonero.

Temos o chapéu-coco, que há tempos costuma ser associado à alta sociedade. Temos as botas “bovver” (bovver é a pronúncia cockney do verbo inglês “bother”, que significa incomodar, perturbar), famosas por serem usadas por gangues e hooligans para chutar pessoas durante brigas de rua. Ou seja, literalmente da cabeça (o chapéu) aos pés (as botas), podemos ver o conflito e a dualidade. 

E então, temos a bengala. A bengala carrega muito simbolismo, visto que é um item que representa o estilo de vida das elites. No entanto, nas mãos de Alex, ela torna-se uma arma que ele usa para atacar as normas e tradições ditadas justamente por essa mesma elite. Mais uma vez, existe uma dualidade aqui.

O mesmo pode ser dito sobre a coquilha (o protetor genital) de críquete: o críquete é um esporte extremamente elitista, reservado normalmente a indivíduos da alta sociedade. Exceto que neste caso, Alex e seus comparsas usam as coquilhas como equipamento de proteção em suas lutas contra, mais uma vez – e ironicamente –, a alta sociedade.

Ao misturar – no mesmo figurino – suspensórios, que era um artigo usado pelas classes trabalhadoras da década de 60 (e também pelos skinheads da época), com itens de elite (como o chapéu-coco e a bengala), Canonero tinha a clara intenção de quebrar as barreiras entre classes, de certa forma enaltecendo a classe trabalhadora e zombando da alta sociedade. 

Em um artigo escrito em 2019 para a British Film Institute, a escritora francesa Elena lazic analisa o estilo indumentário da Gangue dos Droogs e levanta uma reflexão interessante, apresentando a hipótese de que, através de suas roupas, Alex escancarava esse conflito de classes ao “transformar objetos de opressão em armas e armaduras na sua luta contra os opressores”.

Nenhuma conversa sobre o figurino de Laranja Mecânica estaria completa sem mencionar os icônicos cílios postiços no olho de Alex. Sim. Olho. No singular. Colocar cílios em apenas um olho foi proposital. Mas qual o sentido por trás dessa escolha?

Bom, ao invés de eu tentar explicar, acho que é mais fácil ouvirmos o que Canonero e Barbara Daly – a maquiadora do filme – disseram a respeito.

Segundo a própria Canonero: “Kubrick me deu diversas dicas (...). Ele sempre me disse que a cabeça é o elemento mais visível de um filme e que eu deveria sempre começar por ela. (...) Eu conversei com a Barbara (...) e juntas decidimos que (...) colocar cílios postiços em apenas um olho daria um ar implacável e surreal a Alex.”

Barbara completou o raciocínio de Milena, dizendo que estava buscando por algo que agregasse valor ao incrível figurino de Canonero: “Tinha de ser algo extraordinariamente estranho. (...) Algo dramaticamente esquisito. Então eu disse a Stanley, ‘e se a gente usasse cílios postiços?’ e ele disse ‘vamos testar e ver como fica’. (...) (Testamos e)  todos nós tivemos a mesma reação ‘É isso! Ficou sinistro.”

 
 

Canonero trabalha com propósito. Sua abordagem conceitual a impede de trabalhar de outra forma. Os cílios. A coquilha. A bengala. Os suspensórios. As botas bovver. Tudo foi escolhido como parte do desenvolvimento do personagem e como um reflexo da psiquismo desse personagem enquanto ser humano. Existe significado por trás de todos os seus designs.

E existe pesquisa também. MUITA pesquisa.

Tal qual Ruth Carter, Canonero é, acima de tudo, uma pesquisadora.

Um excelente exemplo do seu compromisso com o trabalho de pesquisa pode ser visto no figurino criado por ela para o filme África Minha (1985), com Meryl Streep e Robert Redford. Um artigo do jornal The New York Times intitulado Milena Canonero: Fashion On And Off The Court, e publicado em 11 de fevereiro de 1986, descreveu seu processo de pesquisa durante a pré-produção do filme da seguinte forma:

“Depois de ler o roteiro, ela estudou os trajes das tribos nativas do Quênia, bem como os dos colonos brancos do início do século XX. Ela foi a bibliotecas, embaixadas e museus em Nairóbi e Londres. Ela também conversou com os contemporâneos do autor do livro, Isak Dinesen.

“Você encontra esse cara incrível que mora sozinho em Yorkshire e que tem a maior coleção de referências somalis”, disse ela. '' Você fotografa tudo. Não importa o quão bem você conheça um determinado período, você ainda precisa revisitá-lo. Só depois de fazer minha pesquisa,'' ela disse, '' é que eu parto para o trabalho de criar o que cada personagem deve vestir.”

Aliás, essa é outra coisa que Ruth Carter e Milena Canonero têm em comum: filmes que se passam na África.

No caso de Canonero, estamos falando de um épico que se passa no Quênia e conta a história de uma aristocrata (vivida por Meryl Streep) que se vê dividida entre manter seu sofisticado (porém tedioso) estilo de vida ou abrir mão dele para viver um grande amor ao lado de um caçador simples e de espírito livre, mas que lhe oferece a chance de expandir seu mundo.

O filme chama-se África Minha.

No caso de Carter, também estamos falando de um épico, que se passa no fictício país africano de Wakanda, e conta a história de um príncipe que se torna rei após a morte do pai, e que se vê dividido entre manter os segredos, as riquezas e as tecnologias de Wakanda dentro dos limites de Wakanda (como fizera seu pai antes dele) ou revelar a existência de Wakanda para o mundo, abrindo suas fronteiras e compartilhando suas benesses.

Estamos falando, é claro, do magnífico blockbuster da Marvel, Pantera Negra (2018).

Eu poderia ficar o dia inteiro aqui, escrevendo sobre as centenas de roupas que Carter criou para o filme. Eu amo escrever sobre isso, amo falar sobre isso e amo aprender mais sobre isso. Aos meus olhos, é um dos trabalhos mais elaborados, inclusivos e abrangentes já criados na história dos designs de figurinos. Não à toa, ela ganhou um Oscar por ele.

Mas como essa série de 3 posts já ficou excessivamente longa e eu já tomei tempo demais de vocês, ao invés disso, vou focar em algo mais específico: prefiro falar sobre o fato de que com conceitos, sempre há muito mais do que aquilo que nossos olhos são capazes de ver. E é justamente nessa parte mais ampla e profunda de um conceito – a parte que se encontra abaixo da superfície – que encontramos seu verdadeiro valor.

O trabalho de Carter em Pantera Negra é o exemplo perfeito disso.

Por exemplo, vamos olhar para a estampa triangular impressa no uniforme de T’Challa, o príncipe que se tornou rei de Wakanda.

Esta estampa foi inspirada nas estampas de Okavango. Okavango é o nome do maior delta fluvial interior do mundo (quando um rio que não deságua no mar, mas sim, em uma área pantanosa) e fica localizado no norte de Botswana. Esta região é conhecida por servir de santuário para algumas das espécies mais ameaçadas de extinção do mundo, como guepardos, rinocerontes brancos, rinocerontes negros, leões e mabecos (também conhecidos como cães selvagens africanos).

O delta de Okavango é, dessa forma, um símbolo da vida selvagem incrivelmente rica e dos ecossistemas impressionantemente diversos da África. Ele é protegido pela Lei de 1992, conhecida como Botswana’s Wildlife Conservation National Parks Act of 1992, e também por uma política conhecida como Wildlife Conservation Policy.

Deltas têm formato triangular, assim como o continente africano. E isso, de acordo com Carter, faz com que o triângulo seja visto como a “geometria sagrada da África”. Incorporar o formato triangular ao uniforme do Pantera Negra significava ressaltar o status de T’Challa como um verdadeiro rei africano, que tinha o dever legal de proteger a vida e a diversidade de todas as tribos de Wakanda. 

 
 

Não é muito maravilhoso como uma simples forma geométrica pode carregar tanto sentido?

Quer ver outro exemplo? Peguemos, então, o figurino do personagem W’kabi.

Por que o figurino é um cobertor? Por que ele é azul? E o que são aqueles símbolos desenhados no cobertor? Tudo isso tem explicação.

W’Kabi é o líder da Tribo da Fronteira, cuja concepção no filme foi inspirada pelo povo de Lesoto, especificamente, a Tribo Basotho. Lesoto é um reino incrustrado no coração da África do Sul. Trata-se do único país do mundo a ter TODO o seu território situado acima dos 1000 m de altitude (o ponto mais baixo de Lesoto fica a 1400 metros de altitude).  

Por estar localizado numa região alta e montanhosa, onde a temperatura é normalmente mais baixa e mais fria, o povo de Lesotho usa cobertores como parte de sua vestimenta. Assim o fazem os membros da Tribo da Fronteira, que também vivem nas terras mais altas de Wakanda.

A Tribo da Fronteira habita as regiões mais altas porque sua função em Wakanda é vigiar e proteger as fronteiras de ameaças externas. E é mais fácil de se avistar inimigos chegando de longe a partir de um ponto mais alto, de uma posição geograficamente mais elevada. Neste sentido, a Tribo da Fronteira é aquela com autoridade para dizer quem pode e quem não pode cruzar as fronteiras de Wakanda.

Para o americano Ryan Coogler (diretor do filme), autoridade e proteção são tarefas reservadas às forças policiais. E a policia, nos Estados Unidos, usa azul. Além disso, a bandeira de Lesoto possui um tom de azul bastante particular, que representa o céu. Como a Tribo da Fronteira é aquela que vive mais perto do céu e foi inspirada pelo povo de Lesoto, azul foi a cor escolhida para representá-la.

Os desenhos estampados no cobertor de W’kabi são conhecidos como símbolos Adinkra, que podem ser definidos como uma espécie de “sistema de escrita”. Acredita-se que estes símbolos foram criados pelo povo Akan (uma das principais etnias da África Ocidental), no comecinho dos anos 1800, na região que hoje compreende os países de Gana e Costa do Marfim.

Por alguma razão, os símbolos Adinkra me lembram os primeiros e antiqüíssimos caracteres chineses, visto que representam conceitos universais: liderança, força, amor, independência, etc.

Em uma das cenas mais dramáticas do filme, podemos ver os membros da Tribo da Fronteira participando de uma luta sangrenta contra o próprio T’Challa. É uma quebra no status quo. Antes, a Tribo da Fronteira respondia à T’Challa. Agora, está se rebelando contra ele. Os tempos estão mudando e essa batalha é sinal dessa mudança. Enquanto os guerreiros da Tribo da Fronteira posicionam-se um ao lado do outro, usando seus cobertores como escudos, vemos um símbolo em destaque.  É similar ao símbolo Adinkra que significa “mudança” ou “os tempos mudam”.  

 
 

Finalmente, um último exemplo: o lindíssimo chapéu usado pela mãe de T’Challa, Ramonda, rainha de Wakanda.

A primeira vez em que vemos Ramonda no filme é um momento poderoso. Apesar de estarmos sendo apresentados a ela, de alguma maneira, já conseguimos sentir e saber que ela não é uma residente qualquer de Wakanda. À sua direita está Ayo, uma das Dora Milaje (as guerreiras protetoras de T’Challa). À sua esquerda, temos Shuri, a irmã de T’Challa, usando uma camiseta com um símbolo Adinkra que significa “propósito”. E no meio, ela, Ramonda: a rainha.

A gente meio que consegue adivinhar que ela pertence a algum tipo de realeza por causa do manto que repousa sobre seus ombros. Afinal de contas, mantos sempre foram usados como adornos reais, nas mais diversas culturas, deste tempos imemoriais. Mas o que entrega a sua posição como rainha é o seu chapéu. Trata-se da sua coroa. E foi inspirada no Isicholo, que é o chapéu Zulu usado por mulheres casadas na África do Sul.

E quando eu digo que é sua coroa, não é metáfora ou força de expressão. Basta olhar para a imagem abaixo e vocês entenderão o que eu quero dizer.

Quando Ruth Carter criou o Isicholo de Ramonda, ela queria que o chapéu fosse a extensão de uma coroa verdadeira. E ela não poupou esforços para isso. Para se certificar de que o Isicholo usado no filme seria exatamente igual àquele desenhado por ela no papel, Ruth contratou a arquiteta austríaca Julia Körner, uma designer internacionalmente premiada e reconhecida por suas inovações nas áreas de design e impressão 3D. Juntas, elas criaram mais que um chapéu: criaram uma verdadeira obra de arte, usando polímeros que, apesar de serem fortes e resistentes, eram super flexíveis. 

 
 

Agora, sejamos honestos.

Quantos de vocês já sabiam ou tinham consciência de todas essas coisas sobre as quais acabei de escrever? A coroa do Isicholo da rainha Ramonda, a cor do cobertor de W’kabi ou as formas triangulares no uniforme de T’Challa?

Ok, eu primeiro: eu não sabia. Eu não fazia a menor ideia. Verdade verdadeira, eu não tinha consciência de nenhuma dessas coisas.

E ainda assim, mesmo sem eu saber, mesmo sem nós sabermos, tudo estava lá: meses e meses de rigorosas e extenuantes pesquisas, um propósito muitíssimo claro por parte de Carter (ela não estava buscando diversidade africana; mas sim, representatividade africana), e todos os diferentes significados por trás de cada figurino. Todas essas coisas estavam lá.  

E sabem o que mais estava lá?

O impressionante repertório de Carter. Sua experiência sem paralelos. Seu imenso talento. E gigantesco conhecimento sobre design de figurino. Todas as lições aprendidas, memórias e lembranças que ela acumulou ao trabalhar em tantos filmes diferentes, com tantos diretores incríveis. Todas essas coisas também estavam lá.

E é quando a gente combina todas essas coisas, todos esses “ingredientes”, que a gente se dá conta do REAL valor dos conceitos (neste caso, aqueles criados por Carter). A gente não percebe este valor imediatamente. Porque ele não é óbvio. Mas ele está lá. Ah, e como está! E quando a gente se dá conta disso, é como se fôssemos atingidos por um iceberg que usa toda a energia que existe embaixo da superfície para despedaçar nossas percepções. E expandir nossas mentes.

 
Shelton jackson lee a.k.a spike lee

Shelton jackson lee a.k.a spike lee

 
Eu respeito muito a inteligência da platéia; e é por isso que eu nunca miro no mínimo denominador comum.
— Spike Lee, na estréia de seu filme "Bamboozled" (2000)
 

Eu sou daqueles que acredita piamente na noção de que existe algo de muito poderoso, de que existe um poder enorme em expressões artísticas e trabalhos criativos que NÃO são óbvios e que requerem um pouquinho de esforço (e de repertório) para serem plenamente compreendidas.

E este poder é, nada mais, nada menos, que o poder de nos fazer pensar.

De nos encorajar a questionar. De nos motivar a ir atrás de referências e informações que não detínhamos previamente. De nos convidar a refletir sobre coisas e assuntos que jamais havíamos tido coragem de ou interesse em refletir anteriormente. É o poder de fortalecer e afiar nosso pensamento critico. De nos prevenir de nos contentarmos apenas com o mínimo denominador comum.

E ao longo de todos esses processos, eu gosto de pensar que este poder também nos ajuda a nos tornarmos pessoas e seres humanos melhores.

Eu não sei exatamente de onde vem essa habilidade de Carter de criar peças de roupa tão lindas e tão conceituais, que mais se parecem com obras de arte. E não qualquer obra de arte, mas aquela que nos faz pensar.

Digo isso porque seus figurinos definitivamente NÃO são óbvios. Longe disso. Eles são inteligentes. São extremamente bem pensados. São inspiradores. Sempre há uma mensagem escondida em algum lugar. Sempre há coisas que não percebemos assim, de primeira, mas que certamente irão nos maravilhar e nos surpreender se apenas decidirmos fazer um pouquinho de esforço e cavar um pouquinho mais fundo para encontrá-las.

Talvez ela tenha adquirido essa habilidade após anos trabalhando com Spike. Vai saber, né? Se vocês se lembram do final ultra provocativo do filme Faça a Coisa Certa, Spike termina com duas citações que abordam o tema da violência e seu papel no contexto da justiça racial: uma pertence a  Malcolm X, que advoga em favor da violência como forma de auto-defesa) e uma é de autoria do Dr. Martin Luther King Jr., que advoga em favor do protesto pacífico).   

Spike não nos dá uma resposta óbvia. Ele nos convida a pensar a respeito de cada citação, refletir e chegar a nossas próprias conclusões. Como ele disse uma vez, ele se recusa a entregar tudo mastigadinho para seu público, pois isso seria o equivalente a subestimar a inteligência desse público. Eu concordo.

Uma vez eu disse que pensar conceitualmente nada mais é do que pensar sobre os porquês das coisas. O que eu esqueci de dizer é que, neste sentido, pensar conceitualmente é um direito inalienável. E se não for, deveria ser. Todos nós temos este direito. Nascemos com ele e morreremos com ele. E qualquer tentativa de nos privar ou nos proibir de exercer este direito deveria ser severamente admoestada e imediatamente abominada. 

Agora, por que algumas pessoas deliberadamente ESCOLHEM não perguntar “por quê?”, isso eu não sei e acho que nunca vou conseguir entender. Mas até aí, ninguém pode obrigá-las, certo? Afinal, essas pessoas estão no seu direito de escolher não perguntar e não querer saber, né?

Felizmente, temos pessoas como Carter, Canonero, Gaultier, Pasztor e Mabry, para quem perguntar “por quê?” não é uma escolha, mas um impulso quase visceral. É como se eles simplesmente não conseguissem evitar. E digo “felizmente” porque, em suas incansáveis buscas por respostas, algo lindo e mágico acontece: eles encontram propósito para suas criações, dão significado aos seus designs e CRIAM VALOR para seus figurinos.

Que fique claro: esse valor não tem nada a ver com o custo de produção de um determinado figurino (bem, talvez tenha um pouquinho a ver, considerando que o primeiro traje do Pantera Negra custou aproximadamente USD 350.000!). De qualquer maneira, não é deste valor que estou falando. Estou falando de um tipo completamente diferente de valor. 

Estou falando do tipo de valor que, por exemplo, uma faixa-preta (que nada mais é do que um pedaço de pano – baratinho – amarrado em torno da cintura de alguém) possui, tanto dentro como fora do tatame.

Por trás da estética de uma faixa-preta, existe toda uma ética.

Master+Taekwondo+Plymouth+Meeting+Karate.jpg

O que eu quero dizer com isso é que uma faixa-preta é algo que demanda um determinado comportamento da pessoa que a usa. Uma faixa-preta simboliza a jornada que essa pessoa teve de atravessar para merecer usá-la. Justamente por causa dessa jornada, uma pessoa portando uma faixa-preta pode ter um efeito bastante específico nas pessoas de seu entorno: amor, admiração, respeito, medo, inveja, etc.  E dependendo do efeito causado, essas pessoas tendem a agir (e/ou a reagir) dessa ou daquela forma.   

Por favor, agora, substituam “Faixa-Preta” por “uniforme do Pantera Negra” e leiam o parágrafo acima novamente. Perceberam onde eu quero chegar?

Figurinos são criados para ajudar os atores a mergulhar em seus personagens e a entregar a melhor performance possível. Eles são concebidos para fortalecer a narrativa do filme. O propósito de um figurino é ajudar a vender a história que está sendo contada na tela. Afinal de contas, quando mais a platéia “comprar” a história, melhor será o desempenho do filme. Mais dinheiro ele irá arrecadar. E mais pessoas o filme irá emocionar. 

É por isso que os figurinos criados por Carter, Canonero, Gaultier, Pasztor e Mabry são tão, tão valiosos: porque eles significam algo para os atores. Eles significam algo para o filme. E  dessa forma, eles acabam significando algo para nós também, a platéia.

Voltando ao comecinho da primeira parte desta série de três posts, a moda – enquanto forma de arte – tem um poder muito particular: as roupas que vestimos externamente são geralmente um reflexo das emoções (ou do estado de espírito) que sentimos ou estamos sentindo internamente. Há muito mais nas roupas que vestimos do que os olhos conseguem ver. E neste sentido, como forma de arte, não dá para ser mais conceitual que a moda. 

Como protagonistas de suas próprias histórias, cada um dos personagens que conhecemos nesta série de posts tinha e fez a sua própria escolha. Malcolm X tinha seu zoot suit. Leeloo tinha seu maiô estilo BDSM. James Dean tinha sua icônica jaqueta vermelha. T’Challa tinha o seu traje de Pantera Negra feito de vibranium.

E você? Como protagonista da sua própria história, qual é a sua escolha?

Qual é a peça de roupa que verdadeiramente reflete quem você de fato é (e não o que as pessoas dizem que você deve ser ou acham que você é)?

Qual é o item de vestuário que você sempre mantém em seu guarda-roupa, e que, na sua cabeça, nunca sai de moda, simplesmente porque significa muito para você, e por isso, tem um enorme valor para você? Compartilhe com a gente nos comentários abaixo. E claro, se não se importar, diga-nos por que ela é sua peça favorita. Eu adoraria saber.

Enquanto vocês pensam a respeito, eu posso contar para vocês qual é a peça de roupa que eu escolheria (e ainda escolho) para vestir uma vez todos os dias e duas vezes aos domingos. A peça que tem sido uma constante na minha vida deste os anos 90.

Vocês provavelmente já sacaram, né? É isso mesmo. Acertaram.

É a minha camisa de flanela xadrez. Por quê?

Porque ... ah, quer saber?

Nevermind. ;o)