Moda Conceitual (Parte 2/3)

No último post, descobrimos e aprendemos um pouco mais sobre Ruth Carter e seu trabalho no magistral Malcolm X, dirigido por Spike Lee e lançado em 1992. Sobretudo, aprendemos sobre sua abordagem conceitual na criação dos figurinos do filme: mergulhando em pesquisas, e se certificando de que cada peça de roupa tivesse um significado para o personagem e cumprisse um papel na composição da cena.

O figurinista Moss Mabry teve a mesma abordagem no filme Rebelde Sem Causa (1955).

Durante sua pesquisa, ele passou incontáveis dias visitando inúmeras escolas secundárias de Los Angeles, com o único objetivo de observar a forma com que os adolescentes se vestiam. Junto com Nicholas Ray, diretor do filme, Moss decidiu usar a cor vermelha para criar simbolismos ao falar sobre delinqüência juvenil e conflitos familiares.

Os figurinos de Moss ajudaram a contar a história de Jimmy (interpretado por James Dean), Judy (interpretada por Natalie Wood) e Plato (interpretado por Sal Mineo).

No caso de Jimmy, sua jaqueta vermelha representava o alto de sua rebeldia e de sua raiva. Nas palavras de Ray: “Quando você vê o Jimmy vestido com sua jaqueta vermelha, em frente a seu Mercedes preto, ele não está apenas fazendo pose. Aquilo é um alerta. É um aviso”.
No caso de Judy, seu longo casaco vermelho e seu batom avermelhado simbolizam uma pessoa que, por fora, transborda confiança e sensualidade, mas por dentro, é frágil e confusa.
Finalmente, no caso de Plato, sua meia vermelha sugere a presença de tragédia e morte.

Nos três casos, a cor vermelha foi intencionalmente usada para representar os personagens em suas versões mais desafiadoras/insolentes ou em seus momentos mais frágeis.

Tal qual Mabry usou cores para – conceitualmente – enriquecer a história contada em Rebelde Sem Causa, a húngara Beatrix Aruna Pasztor optou por algo bem mais simples: camisetas. Ela é a figurinista responsável pelas roupas que vemos em Gênio Indomável (1997).

O filme conta a história de Will Hunting, um jovem gênio de 20 anos, auto-didata e que possui um dom incrível para a matemática, mas trabalha como faxineiro no Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT).

O começo dessa história mostra Will como um rapaz problemático, desajustado, perdido e com um enorme talento para se envolver em brigas de rua. Conforme o filme avança, vemos Will amadurecendo, à medida em que enfrenta seus fantasmas do passado, reavalia os relacionamentos que tem em sua vida e começa a pensar no seu próprio potencial e, pela primeira vez, em seu futuro.

Existe um vídeo postado pelo canal GammaRay, intitulado How The Fifth Element Changed Fashion (Como O Quinto Elemento Transformou a Moda), em que descobrimos mais sobre as intenções e os significados que Paztor quis passar nas estampas das camisetas usadas por Will em sua jornada de auto-descoberta: ela quis mostrar a evolução de um “mundo de caos” para um “mundo de ordem”.

Dêem uma olhada nas imagens abaixo e vocês vão entender como ela transmitiu essa ideia de forma linda, incrivelmente sutil e extremamente conceitual.

Falando em O Quinto Elemento (1997), esse filme é uma das maiores razões pelas quais os anos 90 foram, são e sempre serão a melhor década de todas. ;o)

Eu me lembro como se fosse ontem da primeira vez em que assisti a esse filme: meu queixo caiu. Fiquei completamente embasbacado.

O enredo é divertidíssimo – cheio de cenas de ação, engraçado, romântico, e acreditem ou não, até um pouco filosófico. Mas o que realmente me deixou sem palavras não foi nada disso. Foi outra coisa: foram os figurinos ridiculamente, fantasticamente e absurdamente criativos do filme. E isso não sou eu sendo hiperbólico; isso sou eu sendo econômico! Para vocês terem uma ideia do nível de criatividade...

Quando eu assisti a Malcolm X, a Rebelde Sem Causa e a Gênio Indomável pela primeira vez, eu não prestei muita atenção aos figurinos. Para mim, eles eram apenas uma parte do mise-en-scène. Claro que, depois que aprendi mais sobre as mensagens escondidas e as sutilezas que existiam por trás das criações de Carter, Mabry e Pasztor, eu percebi que estava errado. Aqueles figurinos, tais quais os personagens que os usavam, contavam histórias. Eles tinham importância. 

Não foi o caso com O Quinto Elemento, dirigido pelo francês Luc Besson.

Logo de cara, da primeira cena (que se passa no Egito) às cenas futuristas (que se passam na Nova York do século 23), eu senti que algo inédito estava acontecendo. Diferente de todas as minhas experiências cinematográficas anteriores, pela primeira vez, eu percebi que estava prestando tanta atenção ao figurino quanto estava ao roteiro.

O gênio por trás dos figurinos surpreendentemente originais do filme é um cara conhecido como o enfant terrible do mundo fashion: o francês Jean Paul Gaultier.

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Junto com o diretor Luc Besson, Gaultier concebeu mais de 5.000 (sim, vocês leram certo: CINCO MIL) sketches, com o objetivo de vestir cada pessoa no set. Das super estrelas aos figurantes e extras, Gaultier fez questão de criar um figurino diferente para cada pessoa no set de filmagem. Agora vem a parte mais absurda: apenas 1.000 desses sketches foram usados, o que significa que 4.000 nem apareceram no filme!

O canadense Thierry-Maxime Loriot, curador de arte e responsável pela exibição do “The Fashion World of Jean Paul Gaultier: From the Sidewalk to the Catwalk” no Montreal Museum of Fine Arts, em 2011, falou sobre o trabalho de Gaultier no filme:

“Mil figurinos equivalem a 10 coleções, mas (ele criou) tudo para um único filme. É uma quantidade imensa de trabalho e que as pessoas nem fazem ideia. Para mil figurinos, ele teve de produzir 5.000 sketches antes de chegar aos figurinos finais”.

Há anos, cinéfilos, críticos de cinema e revistas de moda têm descrito os designs criados por Gaultier para O Quinto Elemento das mais diversas formas. Provocativos. Bregas. Vibrantes. Insinuantes. Suntuosos. Elegantes. Chocantes. Até mesmo ceremoniosos.

Pessoalmente, eu prefiro a descrição dada pelo Grailed, um website especializado em vendas – em segunda mão – de roupas masculinas e streetwear de luxo: “O trabalho de Gaultier provou-se uma das mais ambiciosas façanhas conceituais já realizadas na história dos figurinos cinematográficos.”

“Conceituais”.
Concordo. 100%.
Porque é verdade.

 
Pedro almodóvar, victoria abril e jean paul gaultier (Kika, 1993)

Pedro almodóvar, victoria abril e jean paul gaultier (Kika, 1993)

 
Os figurinos que Jean Paul Gaultier cria são maravilhosamente belos e ABSOLUTAMENTE CONCEITUAIS. Quase ninguém mais consegue combinar esses dois atributos na mesma peça.
— Pedro Almodóvar
 

Honestamente, não dá para ser mais conceitual do que Gaultier foi em O Quinto Elemento, uma vez que:

  1. Por trás de cada sketch, existe um significado.

  2. Por trás de cada design, existe um sentido.

  3. Por trás de cada figurino, existe um propósito.

Essa poderosa tríade cria valor para os personagens, e mais importante, para a história que está sendo contada.  

Vejamos três personagens que ilustram perfeitamente cada um dos pontos supracitados: a protagonista central Leeloo (interpretada por Milla Jojovich), o antagonista central Jean-Baptiste Emanuel Zorg (interpretado perversamente pela lenda britânica Gary Oldman) e o alívio cômico do filme, Ruby Rhod (interpretado perfeitamente pelo comediante Chris Tucker).

Leeloo primeiro.

Talvez a melhor maneira de descrever Leeloo é que ela é uma espécie de personificação, na forma humana, de uma divindade extraterrestre. A primeira vez que a vemos, ela está “nascendo” dentro de algo que parece ser uma câmara criogênica. E como todos os recém-nascidos, ela está...nua.

Isto é, até Gaultier decidir transformar as faixas que estão mantendo Leeloo presa à câmara em um maiô, que por um lado se parece com um monte de curativos, e por outro se parece com trajes comumente associadas a fetiches de natureza sadomasoquista. Para quem está familiarizado com o trabalho de Gaultier, sabe que a estética BDSM sempre esteve presente em suas criações.

Mas no caso de Leeloo, era mais do que isso.

Ele não criou o figurino com essa estética apenas por força do hábito. Ele queria que o design e a cor da roupa de Leeloo tivessem significados. E como disse a escritora Marianne Eloise, em seu artigo para a revista Dazed: “A nudez e quase-nudez de Jojovich tinham a intenção de mostrar sua vulnerabilidade e sua ingenuidade. A cor branca, em contraste com seus cabelos ultra alaranjados, foi propositadamente escolhida para simbolizar a inocência de Leeloo.

Aí está. SIGNIFICADO.
Ponto número um: check.

Depois, temos o maníaco industrialista Jean-Baptiste Emanuel Zorg.

O seu único objetivo na vida é destruir a Terra, e ele conta com seus capangas para provocar a maior quantidade de crueldade possível, tal qual um chefão da máfia. Para transmitir essa mensagem, Gaultier criou para Zorg uma versão futurista dos coletes e ternos listrados usados pelos gângsters e mafiosos dos anos 1930.

Viram? Cada pedacinho das roupas de Zorg importa. Do colete até o minúsculo anel que ele usa em seu dedinho. Existe um enorme sentido por trás de cada detalhe.

No livro “Fantastique: Interviews with Horror, Sci-Fi & Fantasy Filmmakers – Volume 1”, publicado em 2016 e escrito por Tony Earnshaw, Gaultier nos conta como o anel do dedinho acabou fazendo parte do figurino de Zorg:

“Zorg foi um dos personagens para quem eu criei o maior número de sketches (...) Porque ele tinha de ser muito preciso: tipo um monstro, alguém super fascista. (...) E esse anel no dedinho é algo que os militares fascistas usavam, e por isso, seria o tipo de acessório que faria de Zorg um monstro”.

Eu fico imaginando alguém perguntando para Gaultier: “Mas qual é a desse anel no dedinho? Ele realmente precisa usá-lo? O público mal vai se dar conta! Tem alguma importância?” apenas para ouvir Gaultier respondendo: “Sim, importa. E muito. Existe um sentido enorme no fato de ele usar este anel. Então, é – SIM – muito importante que Zorg o use.

Pronto! SENTIDO.
Ponto número dois: check.

Finalmente, temos Ruby Rhod, um dos personagens mais extravagantes, histéricos e afetados já concebidos na história do cinema. Jean Paul Gaultier jamais teve dúvidas de como desenharia o figurino de Ruby Rhod. 

Nos extras do DVD de O Quinto Elemento, há um conteúdo chamado “Fashion Element”, em que Gaultier fala sobre Rhod:

“Ele (Ruby Rhod) se vê como uma espécie de mistura entre Prince e Michael Jackson.
Eu diria que ele está menos para Michael e mais para Janet Jackson.
Aliás, talvez até LaToya Jackson! (gargalhadas)”

O que significa que, desde o início, o propósito era criar um guarda-roupa que fosse “gender-bending” (além-gênero), ou seja, que quebrasse os estereótipos e desafiasse as definições do que consideramos ser masculino ou feminino. Aqui é onde Jean Paul Gaultier se sente mais confortável e onde ele se mostra um verdadeiro MESTRE: quando ele tem a chance de explorar, testar e ultrapassar limites e barreiras culturais, étnicas e de gênero.

Isto dito, todos os figurinos de Rhod, do “traje estilo tubinho com estampa de leopardo e decote de aba larga”, combinado com uma bengala e um loiríssimo e desbotadíssimo topete ao top de cetim preto enfeitado com rosas escandalosamente vermelhas, tudo foi concebido para servir a um propósito: ser gender-bending. Um propósito que foi plenamente cumprido graças – também – à performance impecável de Tucker.

Voilà. PROPÓSITO.
Ponto número três: check. 

Hoje, O Quinto Elemento já alcançou status de filme cult, e os figurinos de Gaultier ainda inspiram milhões de cosplayers todos os anos ao redor do mundo. Mas nem o filme e nem os figurinos ganharam o Oscar. Ok. Eu entendo por que o filme não ganhou. Eu amo o filme, e ele continua sendo um dos meus favoritos, mas eu entendo.

Se o filme tivesse sido nomeado em 1997, ele teria competido no Oscar de 1998. E naquele ano, a competição estava particularmente acirrada. O vencedor do Oscar de Melhor Filme naquele ano foi um filme do qual vocês já devem ter ouvido falar: chama-se Titanic. ;o) Pois é... Então, dá para entender por que O Quinto Elemento não teve chance enquanto filme.

Mas até hoje eu não consigo entender como Gaultier não foi sequer contemplado. Seu trabalho no filme de Besson foi inventivo. Cheio de imaginação. E mais importante de tudo, inegavelmente e brutalmente ORIGINAL. E originalidade deveria contar, não? Especialmente quando estamos falando de conceitos originais.

Naquele ano, o vencedor do Oscar de Melhor Figurino foi... pois é. Vocês acertaram. Titanic. É claro. Por que não seria, né? Titanic abocanhou todas as estatuetas daquele ano. E querem saber? Merecidamente, na minha opinião.

Mas eis algo que eu nunca entendi: quais são os critérios que definem o Melhor Figurino?

A meu ver, no caso de “filmes de época” (como Titanic), onde o diretor conta uma história que, de fato, aconteceu, ou que se passa em um período de realmente existiu, o critério provavelmente tem a ver com pesquisa, verossimilhança e autenticidade. Para todos os especialistas em moda que estão lendo esse post, eu estou errado? Por favor, adoraria ouvir seus comentários.

Mas caso eu esteja certo, então como avaliar a autenticidade e a verossimilhança de um figurino que não existe e/ou que nunca existiu? Figurinos como aquele criado por Gaultier, do zero. Estamos falando de designs que foram concebidos e conceituados na mente de Gaultier. Como julgar esse tipo de design?

Acho que tenho uma solução.

Vocês sabem que existem dois Oscars para roteiro, né? Existe o Oscar de Melhor Roteiro Adaptado (também conhecido como Oscar de Melhor Roteiro Adaptado De Outra Fonte) e há o Oscar de Melhor Roteiro Original (também conhecido como Oscar de Melhor Roteiro Não Baseado em Material Publicado Anteriormente)

Pois bem. É isso.

Acho que deveria haver um prêmio para melhor figurino adaptado (como Titanic) e um para melhor figurino original (como O Quinto Elemento). Dessa forma, pensadores conceituais como Gaultier teriam uma chance de competir. Não seria demais? Fica a dica para os membros da Academia de Cinema: está na hora de mudar as regras! Façam algo a respeito! ;o)

Como todos nós sabemos, até as obras mais originais são influenciadas e inspiradas por outros trabalhos e artistas.

E uma das maiores inspirações na vida de Jean Paul Gaultier foi um filme chamado Laranja Mecânica. A influência deste filme em Gaultier é tão forte que, em 2008, ele chegou a lançar uma coleção inteira (de outono) com o intuito de homenagear os figurinos do clássico de 1971, de Stanley Kubrick. Anos depois, em um festival de cinema, Gaultier encontrou Malcolm MacDowell (o ator que interpretou Alex, o protagonista de Laranja Mecânica) e lhe disse: “Muito obrigado! Aquele filme mudou completamente minha forma de fazer design”.

Foi um gesto muito gentil da parte de Gaultier. Mas a pessoa que ele deveria ter agradecido, na verdade, era a italiana Milena Canonero. A mulher é UM MONSTRO. Ela já fez de tudo. O Iluminado, Expresso da Meia-Noite, Carruagens de Fogo, O Poderoso Chefão III, Grande Hotel Budapeste. E estes são apenas alguns dos filmes que ela tem em seu currículo.

No entanto, na minha humilde opinião, seu trabalho em Laranja Mecânica continua sendo, de longe, o melhor. Por motivos óbvios: é o mais original. E é também o mais conceitual.

E é exatamente sobre ele que falaremos no próximo post!

Até lá!

Moda Conceitual (Parte 1/3)

Vamos voltar à melhor década de todas: os anos 90.

Ok. Há controvérsias. Apague o que eu disse. Sejamos um pouquinho mais específicos. Vamos falar de música. Acho que, em termos musicais, não há o que discutir, né? Os anos 90 foram os MELHORES! Nenhuma outra década chega perto.

Com todo o respeito aos anos 70 (que nos abençoaram com bandas como Rush e Pink Floyd) e os lustrosos e acetinados anos 80 (que nos agraciaram com álbuns como Appetite for Destruction e Master of Puppets). Mas essas décadas nem se comparam. Os anos 90 são um assunto à parte.

Os anos 90 nos deram Tupac, Snoop e Dre no Oeste; Biggie, Jay-Z e Wu-Tang no Leste. Os anos 90 nos deram o Rage Against The Machine! Os anos 90 nos deram o Grunge, gente! Precisa dizer mais? 

A cena musical dos anos 90 tinha uma atitude inegavelmente vou-com-tudo, tô-nem-aí, quero-mais-é-que-se-exploda. Um lance meio... Nevermind (Nirvana, alguém?). E parte de mim não consegue deixar de pensar que isso nada mais era do que um reflexo do Zeitgeist que imperava na época. Foram anos confusos e muito, muito estranhos.

Foi também nessa década que nasceu o conceito de ‘supermodelo’. Os anos 90 inauguraram uma nova era no mundo fashion, abrindo com nomes grandes como Cindy Crawford, Naomi Campbell e Linda Evangelista, e fechando com o maior nome de todos: a brasileiríssima Gisele Bündchen.

Música e moda parecem existir como dois lados da mesma moeda ou dois lados do mesmo cérebro. Um não existe sem o outro. Os dois se complementam. E como a maioria dos adolescentes dos anos 90, eu usava meu gosto musical e meu estilo fashion (ou, na verdade, a falta de ambos) para expressar meus sentimentos, encontrar minha identidade e manifestar minhas opiniões.

Minhas armas preferidas eram uma camisa de flanela xadrez e calças jeans estilo baggy. Pois é. Não vou nem tentar mentir. Eu era metido a grunge. Digo “metido” porque eu cresci em uma escola particular alemã em São Paulo, no maravilhoso clima brasileiro, sob o olhar atento e constante dos meus pais orientais que priorizavam a educação e a performance acadêmica acima de tudo.

O que significa que eu não tinha nada em comum com os adolescentes nascidos e criados na fria e chuvosa Seattle, negligenciados por pais ausentes, deixados meio que à deriva, e que VERDADEIRAMENTE entendiam o que Cobain, Vedder e Cornell diziam em suas canções. Mas por alguma razão super desconhecida (Soundgarden, alguém?), a estética e a ética grunge falavam comigo.

Meus colegas de escola também se vestiam de acordo com suas convicções.

Alguns chacoalhavam suas longas cabeleiras ao som de Iron Maiden ou Black Sabbath. Outros usavam jaquetas e botas de couro, tocando Ramones ou Die Toten Hosen em seus aparelhos de Walkman (vai vendo como eu sou velho...). E ainda havia os eventuais clubbers, que curtiam bandas como The Prodigy e The Chemical Brothers, em uma época em que a maioria de nós não entendia o que era música eletrônica e... entendia menos ainda o que a galera clubber vestia.

De toda forma, foi durante esses tumultuados anos do colegial que eu vim a entender que roupas não são apenas para proteção ou para embelezar.
Elas são significantes.

Assim como nossas canções, bandas e álbuns favoritos, nossas roupas contam histórias. Elas representam quem somos, refletem nossa maneira de pensar e simbolizam o que faz nosso coração bater mais forte naquele momento específico da nossa vida.

Em outras palavras, nossas “escolhas fashion” têm significado.

Conceitos têm o poder de dar significado às coisas e, assim, criar valor para elas. Neste sentido, a moda é (e tem o potencial de ser) tão conceitual quanto qualquer outra forma de arte. Isso não é uma conclusão teórica. É a constatação de um fato.

Eu sei disso porque, como um rapaz de 15 anos cheio de inseguranças, eu experimentei esse poder em primeira mão: saber que outros alunos da escola também estavam vestidos com camisas de flanela xadrez significava que eu não estava sozinho nas minhas angústias adolescentes. E essa compreensão era extremamente valiosa para mim.

Desde então, passei a ter um apreço muito maior por design de moda. Eu não me interesso por coisas como “tipos de tecido” e nem presto atenção a coisas como tecnologias têxteis ou coisa que o valha. Espero que os engenheiros têxteis de plantão não se ofendam comigo, mas a verdade é que, seja lá por qual razão, esse tipo de coisa não me interessa.

O que me interessa é olhar para alguém ou para um grupo de pessoas vestidos de uma certa forma e tentar entender os porquês que existem por trás daquele estilo em questão.

Qual é a daquela corrente de metal pendurada para fora do bolso dele? Por que ela está vestida com um foulard enrolado em volta da cabeça? Qual a mensagem por trás de uma certa cor ou de uma determinada estampa na camiseta? Essas são as questões que tornam a moda interessante para mim.

Foi também nos anos 90 que assisti a um dos filmes mais fortes da minha vida: Malcolm X, dirigido por Spike Lee, lançado em 1992 e estrelando Denzel Washington no papel do ativista americano. O filme teve um impacto tão grande em mim que, alguns anos depois, decidi ler o livro By Any Means Necessary: Trials And Tribulations of the Making of Malcolm X, escrito pelo próprio Lee e por Ralph Wiley.

Como o próprio título do livro sugere, Lee fala sobre o “making of” de sua obra-prima. Ele aborda as ameaças que recebeu do Nation of Islam. Ele nos conta sobre suas brigas épicas com os estúdios Warner Bros., por causa do orçamento do filme. E ele dedica quase um capítulo inteiro para falar sobre a meticulosa e exaustiva pesquisa que foi feita como parte do processo de criação e design dos trajes de época – suntuosamente detalhados – que vemos filme.

É aqui que entra... Ruth E. Carter.

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Ruth Carter é uma figurinista de Springfield, Massachusetts, e já trabalhou com nomes como Spike Lee (Faça A Coisa Certa, Malcolm X), Steven Spielberg (Amistad), John Singleton (O Massacre de Rosewood, Quatro Irmãos) e, mais recentemente, Ryan Coogler (Pantera Negra).

Ruth Carter é INCRÍVEL. Não apenas porque ela ganhou o Oscar de Melhor Figurino em 2019, pelo seu trabalho no blockbuster da Marvel Pantera Negra. Não, não é por isso. O Oscar é legal e tudo mais. Mas ele é apenas a ponta do iceberg. Não é por isso que ela é um exemplo de profissional criativo para mim.

Para mim, o que faz dela uma designer brilhante e inspiradora é o fato de ela se enxergar como uma pesquisadora, acima de tudo. A quantidade (e a qualidade) de pesquisa que há em seu processo criativo não têm paralelos. Essa pesquisa começa no momento em que Carter recebe o roteiro e vai até o momento da prova dos figurinos com os atores.

Existe uma série de vídeos produzidos no estilo de documentário, chamado “Academy Originals”, de propriedade da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas. Um dos episódios é justamente sobre Carter, no qual ela nos fala sobre seu processo criativo e nos explica de onde vêm suas ideias.

Primeiro, ela conta como tudo começa com o roteiro.

“Geralmente, eu gosto de ler o roteiro e viver a história. (...)
(Na primeira leitura), cores começam a pipocar na minha cabeça. Eu vejo a paleta de cores.
A segunda vez que eu leio o roteiro, eu foco na imagem geral, na visão ‘macro’, de cada personagem.
E daí, na próxima vez que eu leio, eu começo a entrar nos detalhes de cada personagem, individualmente (...)”.

Em outras palavras, ela repassa o roteiro TRÊS VEZES ANTES de sequer começar a rabiscar, desenhar ou conceber qualquer coisa.

Ela continua sua explicação e pula para a parte final do processo: a prova dos figurinos.

“Um dos aspectos do processo criativo que eu mais amo é a prova dos figurinos.
Muitas vezes, as ilustrações, as pranchas, as paletas de cores, as amostras, tudo isso
vai por água abaixo quando dois artistas se juntam e discutem “como eu posso contar a história desse personagem através das roupas?”
Por isso eu passo tanto tempo com os atores. Nossas provas de figurino costumam durar umas duas horas, durante as quais, os atores se tornam uma espécie de
canvas”.

Isso significa que mesmo durante a prova de figurino, a última etapa antes da produção das roupas propriamente dita, Carter ainda faz suas pesquisas, coletando informações, pegando novos inputs, e com base neles, fazendo ajustes finais, mudando aqui e ali.

Sabe, alguns criativos têm a capacidade de conceber as ideias mais brilhantes assim, do nada. Sério, eu não tenho a menor noção de como eles conseguem fazer isso. Eu conheci alguns criativos assim durante minha carreira, sobretudo redatores. E eu não tenho vergonha de admitir: eu os invejava. Eu sempre me maravilhei com a forma com que eles eram capazes de chegar aos textos mais poderosos e aos slogans mais espirituosos assim... num estalar de dedos.

Quem dera eu fosse como eles.
Infelizmente, eu não sou.

Pelo contrário: eu sou o tipo de criativo que precisa fazer uma longa pesquisa antes de sequer começar a criar. Talvez por isso eu me identifique tanto com o raciocínio criativo de Carter: porque eu entendo o que ela está fazendo quando mergulha nas suas pesquisas. Quando ela faz isso, ela está buscando entender o contexto antes, para assim, se sentir preparada para criar seus conceitos depois.

A pesquisa tem um efeito indispensável e extraordinário no processo criativo: ela alimenta a ideia. Ela torna a ideia mais forte ao conferir mais profundidade, precisão e veracidade aos conceitos.

Quando você faz sua pesquisa, e faz da maneira correta, sem pular nenhuma etapa, quando você conduz sua pesquisa do jeito que Carter conduz, ou seja, de forma implacavelmente detalhada e cuidadosa, algo espetacular acontece: suas ideias e conceitos tornam-se praticamente inatacáveis, de um ponto de vista objetivo.

Subjetivamente, claro que as pessoas sempre terão o direito de gostar ou não da sua ideia, independente de quanta pesquisa você tenha feito Mas quando você faz sua pesquisa da maneira que ela deve ser feita, do jeito correto, e ainda assim as pessoas não gostam da sua ideia, isso significa apenas que ela não é a ideia certa (no sentido de não ser a favorita). Jamais significará que ela é a ideia errada (no sentido de ser incorreta).

Deixe-me explicar essa diferença, entre uma ideia “não ser a ideia certa” e uma ideia “ser a ideia errada” com um exemplo real.

Em 2011, a seleção de futebol da França trocou de patrocinador. Após 40 anos de parceria com a Adidas, les bleus (os azuis) decidiram mudar para a Nike. Obviamente, a primeira missão da Nike foi criar o novo uniforme do time. E, na minha opinião, eles acertaram na mosca: a camiseta é absolutamente perfeita. Eu até comprei uma para mim (isso que eu nem gosto de futebol!). O vídeo abaixo mostra um pouco do processo criativo por trás do design daquele que se tornou o uniforme de estréia da Nike para a équipe de France.

Bom, a maioria das pessoas que eu conheço amou o novo design. Mas houve aqueles que não curtiram. E tudo bem. Arte é algo muito subjetivo. Para algumas pessoas, a ideia que a Nike teve para o novo uniforme não foi a ideia certa. O que significa apenas que, para essas pessoas, o design da Nike não foi o favorito delas. É isso. Diga o que quiser, chame o design do que quiser, mas não há nada de ERRADO com ele: a cor está correta. O emblema está correto. Até a frase estampada atrás do emblema, e que representa a diversidade que existe na seleção francesa (nos differences nous unissent), está correta. 

Vamos imaginar a seguinte situação agora. Digamos que a Nike tivesse criado um uniforme tão lindo, cool e elegante, que seria uma unanimidade. Digamos que TODO MUNDO tenha amado. Mas com um porém: ao invés de um galo (o símbolo da França), a Nike colocou uma águia. Ao invés de azul (a cor oficial da seleção francesa), a cor do uniforme é laranja.

Digamos que a ideia por trás da águia seja representar a liberdade, ou seja, la liberté. Digamos que a ideia por trás da cor laranja seja simbolizar energia, força e resiliência. São ótimas ideias, no sentido de que estamos falando de um time de futebol. Mas considerando que a águia é o animal que representa a Alemanha, e que laranja é a cor que simboliza da Holanda, não importa o quanto tenhamos gostado do novo design: a ideia por trás dele está INCORRETA.

Viram a diferença?  

Se você é como eu, ou seja, alguém que não sabe NADA de futebol, provavelmente existe a chance de você cometer alguns erros, usando o laranja no lugar do azul, e a águia no lugar do galo. Mas quando você faz sua pesquisa, as chances de você cometer esse tipo de deslize cai para praticamente zero.

É nossa responsabilidade, enquanto criativos, nos certificarmos de que nossas ideias jamais estejam INCORRETAS.
Motivo pelo qual temos de fazer nossa lição de casa E nossas pesquisas.  

A ideia mais poderosa é – e sempre será – aquela que as pessoas estão dispostas a “comprar”, tanto literalmente (pagando por ela) como figurativamente (acreditando nela). E as pessoas só compram coisas que são valiosas para elas, em maior ou menor grau. Compramos coisas que tenham algum SIGNIFICADO para nós. No caso de uma ideia – de um conceito – nós compramos uma ideia quando sentimos que ela nos representa, de alguma forma.

Ruth Carter se mostra um ás absoluto neste sentido. Assistam às entrevistas dela. Leiam artigos sobre ela. Vocês verão que duas palavras sempre estão presentes em seus discursos. Um substantivo e um verbo: “pesquisa” e “representar”. E essa combinação cria uma situação extremamente delicada para ela.

Enquanto criativos, quanto mais pesquisa fazemos sobre um determinado assunto ou projeto, mais inputs adquirimos, mais conhecimento acumulamos e mais insights somos capazes de ter. O resultado disso é que a tentação de criar conceitos que englobem TUDO o que foi aprendido e descoberto durante a pesquisa é muito, muito grande. É o nosso ego falando, sabe? Queremos mostrar tudo aquilo que sabemos sobre tal assunto.

Em outras palavras, é fácil cair na armadilha de se pensar “mas eu não posso deixar nada de fora, pois tudo é importante”. Quando criativos caem nessa armadilha, normalmente o que acontece é que as ideias tendem a ser tão amplas e tão genéricas, que no final, ela acabam se parecendo com a maioria dos aeroportos do mundo: insípidas, sem identidade, e o pior de tudo, não originais.

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“Nada é mais bonito do que um sketch feito em um pedaço de papel”

Ruth E. Carter

 

Bom, então como saber o que deve ser mantido e o que deve ser cortado da pesquisa?
Quais são os critérios?

Em uma entrevista à Vanity Fair, em 22 de dezembro de 2020, intitulada ‘Black Panther's Costume Designer Ruth E. Carter Breaks Down Her Iconic Costumes’, Carter deu a resposta perfeita para essas perguntas:

“A parte mais difícil de ser uma figurinista é que (...) nós estamos por trás das câmeras, mas também na frente delas (...). Há muitas pessoas e camadas envolvidas na criação de um figurino – desde vestir a pessoa no set de filmagem até comunicar ideias – algo que eu preciso constantemente gerenciar, para manter os pés no chão.
Todos nós queremos ser o centro das atenções, mostrar nossas coisas, nos colocar na frente de todo mundo e (dizer): ‘olhem para mim, olhem para mim’!
Mas muitas vezes, o melhor é dizer ‘NÃO olhem para mim’. Muitas vezes, o certo é
: ‘vamos ser sutis’
Acredite ou não, é preciso – SIM – adotar aquela mentalidade de que ‘menos é mais’. Há também uma necessidade constante de se ter uma visão MACRO, olhando a composição da cena como um todo, e não apenas o figurino. Eu preciso estar, o tempo todo,
ciente da INTENÇÃO e da composição da cena”.

Em outras palavras, não tem a ver com ela, Ruth Carter. Muito menos com seu ego. Não se trata de mostrar para o diretor o quanto ela sabe sobre o assunto. A própria Carter disse: não tem a ver com ‘olhem para mim, olhem para mim’! Pelo contrário. Tem a ver com ‘NÃO olhem para mim’.

Às suas palavras, eu adicionaria o seguinte: “Não olhem para mim...Ao invés disso, olhem para a cena. Concentrem-se no personagem. Prestem atenção na história que está sendo contada”.

Resumindo, uma vez que a pesquisa está feita, é assim que você decide o que será mantido e o que será cortado.
Você se pergunta: POR QUE eu estou mantendo isso?

Pense assim: figurinos custam (muito) dinheiro, ou seja, qualquer detalhe que você queira adicionar a eles, qualquer mudança que você quiser fazer neles, tem de ser justificável. O estúdio, o diretor, a produtora, eles vão querer saber por que você está adicionando isso ou aquilo, por que você está mudando essa ou aquela cor, por que você está desenhando o figurino desta ou daquela forma.

E para aqueles que pensam conceitualmente, “porque fica mais bonito” não é e jamais será uma resposta aceitável. É preciso haver um porquê.

Cada item de vestuário (de minúsculos acessórios a ternos elaborados) precisa ter um significado. Cada detalhe (das texturas às cores) precisa ter um sentido. Os figurinos precisam representar algo específico. Eles devem servir a um propósito específico no filme.

Às vezes, o objetivo é inspirar e destacar uma fala de um personagem. Outras vezes, é mostrar quem são os personagens, de onde vêm, e como estão ligados uns aos outros.

Carter é provavelmente uma das figurinistas mais conceituais que já passaram por Hollywood. Seus figurinos, por si só, contam histórias. E cada uma dessas histórias cumpre um papel não apenas na composição da cena, mas também na narrativa geral do filme. A seguir, vamos conferir como essa abordagem conceitual de Carter funciona.

No filme Malcolm X, por exemplo, Carter nos convida a conhecer três períodos diferentes da vida de Malcolm, através de três figurinos diferentes.

Primeiro, temos os extravagantes zoot suits, com suas cores fortes e brilhantes, que representavam o período em que Malcolm vivia traficando nas ruas, com uma atitude arrogante e cheia de vaidade, e um estado de espírito marcado pela malandragem. Havia aquele exibicionismo e egocentrismo típicos de quem se sente intocável.

Depois, temos os uniformes azuis, no estilo ton-sur-ton, do tempo em que ele esteve preso na penitenciária de Massachussets. Carter deliberadamente “esfriou” a paleta de cores durante as cenas na prisão, uma vez que a intenção dessas cenas era mostrar um período mais frio, triste e – posteriormente – pensativo e contemplativo da vida de Malcolm.

Para Carter, essa transição, das cores vibrantes dos zoot suits para as cores frias e desbotadas dos uniformes jeans da penitenciária, significava a transição do próprio Malcolm, de um jovem impulsivo que pensava apenas em ganhar dinheiro ilegalmente nas ruas para um homem adulto sereno, religioso, educado e articulado.

Finalmente, temos o terno que Malcolm usa durante seu primeiro encontro com Elijah Muhammad. De acordo com Carter, “o terno era velho, grande e um pouco amarrotado”. Isso não foi por acaso. Foi intencional. Aquele terno, que Carter chamou de “um dos figurinos dos quais mais me orgulho” tinha um sentido enorme na cena, pois simbolizava a humildade de Malcolm. O terno mostrava que ele era um homem mudado depois da prisão. A vaidade e o egocentrismo representados pelos zoot suits não existiam mais.  

Carter foi longe e não poupou esforços (como sempre) na pesquisa que antecedeu o design dos figurinos de Malcolm X. No seu episódio da série Abstract, da Netflix, por exemplo, ela nos conta até que nível de detalhes ela foi para criar os zoot suits.

“Eu pesquisei exatamente qual o comprimento do terno, quão estreitas deveriam ser as calças, que tipos de correntes acompanhavam, que tipo de relógio de bolso ia junto, qual o comprimento da pena. Tudo isso para que a gente pudesse experimentar, de verdade, a sensação de vestir um zoot suit”.

Ela também não economizou na pesquisa quando foi desenhar os uniformes da prisão e o terno usado no encontro com Elijah Muhammad.

“Eu queria saber mais coisas sobre Malcolm X. Não o lado ativista, mas o lado “ser humano”. Como ele tinha sido preso no Departamento de Correções de Massachusetts, escrevi diversas cartas para eles, pedindo para ver como foi a vida de Malcolm.

Tive acesso a relatórios médicos, sua ficha criminal, e também a algumas cartas escritas por ele. E eu percebi que sua caligrafia foi mudando, sua gramática ia ficando cada vez melhor, à medida que ele ia estudando. Consegui aprender um pouco mais sobre Malcolm X através de seus textos.

E isso foi muito importante, já que eu estava encarregada de criar roupas que ele usava numa época em que não se sabia muito sobre ele e não havia muitas fotos dele. E eu queria ser capaz de tomar algumas decisões que eu sabia que seriam criticas no sentido de contar sua história”.

Viu? Não falei? Quando eu disse que Carter se enxergava como uma pesquisadora acima de tudo, eu não estava mentindo. Afinal, quem vai ao extremo de pedir até relatórios médicos para desenhar e criar um figurino? Mas ela não fez isso à toa. Ela tinha um propósito muito claro em mente. E o propósito era ser capaz de contar a longa, complicada e multi-facetada história de Malcolm X da maneira correta.

Carter não é a única a criar figurinos dessa forma no mundo fashion. No próximo post, conheceremos um pouco mais sobre outros figurinistas, igualmente incríveis e brilhantes, que abordam a moda da mesma forma que Carter.

Conceitualmente.

Até lá!

A Casa Indestrutível

Olá, meu nome é Eugene. Muito prazer.  

Sejamos honestos, vai? É um nome um tanto esquisito esse meu, né? Sei lá. Eu acho. Considerando que eu nasci e cresci no Brasil, até hoje não sei por que meus pais inventaram de me dar esse nome. Também não sei quantas vezes tive a seguinte conversa ao longo da minha vida.

Pessoa: Oi, qual é o seu nome?
Eu: Eugene
Pessoa: Ah, prazer Eugênio.
Eu: Não. Eugene.
Pessoa: Como?
Eu: Nada não. Esquece. Eugênio tá bom.

Conforme o tempo foi passando, fui percebendo que não é só o nome Eugene que é meio esquisito. Parece que quem carrega esse nome também tende a ser. Em outras palavras, se algo ou alguém se chama Eugene, provavelmente é meio bizarro. Meio estranho. Como um dos meus xarás uma vez disse: “Não dá pra ser cool com um nome como Eugene.”

A pessoa que disse isso é um cara de dupla cidadania (canadense e americana) chamado James Eugene Carrey. Ele é ator. A maioria de vocês o conhece como Jim Carrey. Sim. O próprio. O Máscara. Ele mesmo. No dia 15 de maio de 1994, ele deu uma entrevista ao jornal Los Angeles Times, e falou sobre como se sentia constrangido com toda a fama de ser uma estrela de Hollywood. Eis o que ele disse:

“Minha vida é uma sucessão de momentos constrangedores. Eu já participei de premières e tentei dar uma de cool, saindo antes de todo mundo, apenas para dar de cara com o motorista da limusine, que esqueceu a chave dentro do carro, com o carro ligado. Lá estava eu, trancado para fora do carro, enquanto todo mundo saía do cinema me olhando.

Eu chamo isso de Síndrome do Eugene. Meu nome do meio é Eugene e eu acho que meus pais me deram esse nome para me manter humilde. Não dá pra ser cool com um nome como Eugene”.

Jim Carrey participou de um filme, lançado em 2000, chamado “Me, Myself and Irene”, dirigido pelos irmãos Farrelly. Carrey interpreta um policial estadual chamado Charlie, que sofre com dupla personalidade. De um lado, temos Charlie, que é amável e super gentil. Do outro, temos Hank, o alter-ego desequilibrado e sem noção de Charlie.

Cinco anos após o lançamento do filme de Jim Carrey, em 2005, um dos meus Eugenes favoritos no mundo lançou seu próprio filme, um documentário chamado “Mick, Myself and Eugene”. Eu estou falando sobre o surfista mais rápido de todos os tempos, e 3 vezes campeão mundial de surf, o australiano Michael Eugene Fanning, também conhecido como Mick Fanning.

Este documentário nos mostra os três lados de Mick: “Mick” é o atleta campeão super competitivo, “Myself” é o free surfer de espírito elevado que faz do surf a sua religião, e “Eugene” é o louco desvairado que adora uma festa. Eugene, claro, é aquele que sai do controle e não só atrapalha a brilhante carreira profissional de “Mick”, mas também tira o “Myself” do seu estado zen.

Dizem que três é o número mágico, então vamos ao terceiro e último exemplo.

Existe um negócio chamado Teatro do Absurdo. Já ouviram falar? É um movimento artístico do final dos anos 50, onde as peças de teatro contavam histórias sobre a condição humana, ora pendendo para o existencialismo, ora pendendo para o niilismo. Ou seja, coisa de maluco.

Isso dito, acho que não será surpresa para vocês quando eu disser que uma das características mais prevalentes desse movimento era a de que nada seguia uma ordem lógica e tudo soava e parecia meio sem nexo, dos temas das peças aos diálogos entre os personagens. Pensando bem, não é à toa que o nome do movimento contém a palavra “Absurdo”.

Bom, como que por acaso, um dos maiores pilares e ícones deste movimento foi um cara nascido na Romênia, mas criado na França. Ele era dramaturgo. Seu nome? Adivinhem. Que nome rima com absurdo? Pois é. Eugene. Mas o cara era francês, então, na verdade era Eugène. Seu nome completo? Eugène Ionesco.

Acho que provei meu ponto, né?

Bom, a razão pela qual eu fiz questão de trazer esses Eugenes um tanto quanto peculiares e idiossincráticos à tona é porque eu queria preparar vocês antes de apresentá-los a um dos nossos xarás mais talentosos, inteligentes e não-convencionais: o arquiteto americano de ascendência chinesa Eugene Tssui (pronuncia-se T-sway).

Ele é a mente por trás do famoso (e insólito) design do Fish House, localizada na cidade de Berkeley, na California. A casa não parece um peixe, então, não sei por que ela se chama Fish House. Ela também é conhecida como “Ojo Del Sol” (que significa Olho do Sol, em espanhol). O que também não faz o menor sentido, uma vez que a casa não se parece com um olho e muito menos com o Sol.

Vocês já ouviram falar de uma série do Netflix chamada The Good Place? É maravilhosa e eu super recomendo. Enfim, há um episódio deste série em que um dos protagonistas diz que sofre de algo que os médicos chamam de “Insanidade Direcional”, alegando uma vez ter se “perdido em uma escada rolante”. Sou eu. Eu sofro disso. Eu não sei ler mapas. Eu me perco em todo e qualquer lugar. E eu sou daqueles que considera o Waze a melhor invenção de todos os tempos. ;o)

A primeira vez em que bati os olhos no Fish House foi por causa da minha insanidade direcional. O ano era 2001 e eu era um estudante em UC Berkeley. Estava digirindo em uma avenida chamada San Pablo, tentando chegar em uma outra avenida chamada Ashby. Essas avenidas se cruzam, então, na verdade, tudo que eu precisava fazer era dirigir em linha reta. Mas ainda assim, de alguma forma, eu me perdi e fui parar em uma rua chamada Matthews. Mais precisamente, no nº 2747 da Matthews Street, o endereço do Fish House.

Quando vi a casa de longe pela primeira vez, não conseguia acreditar no que meus olhos estavam vendo. Parecia algo de outro mundo. Primeiro, achei que fosse uma casa feita no formato de um cogumelo. Depois, passei na frente de novo e, dessa vez, parecia uma concha de caracol. Finalmente, resolvi passar uma terceira vez, e nessa última vez, por alguma razão, meu cérebro enxergou a casa como uma espécie de concha de Nautilus cortada ao meio, na transversal. Enfim. Vocês entenderam, né? Era surreal. Inusitado. Mas mais importante, era completa e absolutamente original.

Dr. Eugene Tssui, como a maioria dos Eugenes (e eu me incluo nessa) é um desses caras meio esdrúxulos, que às vezes causam espanto, às vezes causam riso, e frequentemente causam ambos. E que por esse motivo, costumam passar a impressão de serem meio, digamos, desajustados. No caso de Tssui, é difícil descrevê-lo. Alguns o vêem como um gênio. Outros o chamam de visionário. A maioria o considera um polímata.

Pessoalmente, eu o vejo como uma espécie de Ziggy Stardust Asiático, levando seus Spiders from Mars em uma estranhíssima Viagem ao Centro da Terra, Rick Wakeman bombando nas caixas e sonhos de Picasso, Matisse e Charisse pulsando em sua mente.

Ele é um atleta, mas também é músico. É um artista marcial que dança Flamenco. É um medalhista olímpico e um designer premiado. Algumas pessoas dizem que ele vem de outro planeta e ele simplesmente dá de ombros. Ele venceu 8 vezes o campeonato mundial de boxe amador. E quando suas mãos não estão amassando a cara de alguém, estão tocando Chopin no piano.

Academicamente, seu caminho também é sem paralelos. Ele foi expulso do programa de mestrado da Columbia University, em NYC, porque – segundo o reitor do departamento de arquitetura –, “eles não poderiam ensinar o que ele queria aprender”. Então, Tssui mandou a Costa Leste às favas e voou rumo ao Oeste.

Recomeçou seu mestrado, dessa vez, na University of Oregon, localizada na cidade de Eugene. Isso mesmo. A cidade de Eugene, no estado de Oregon. Bom, com um nome desses, era de se imaginar que ele seria acolhido – ou pelo menos, aceito – lá, né? Pois é. Só que não. Ele foi expulso de novo, dessa vez, por “diferenças conceituais”. Não falei? Eu avisei... Eugene é tudo esquisito.

Finalmente, ele acabou parando em UC Berkeley (go Bears!), o berço do “Movimento da Liberdade de Expressão”, onde sua abordagem incomum e seu trabalho super imaginativo foram não apenas tolerados, mas encorajados.

 
 

Tssui é de origem chinesa (seus pais possuem raízes em Beijing e em Shanghai), mas se identifica muito mais com a Mongólia. Tanto que ele diz que a razão pela qual ele adicionou um “s” ao seu sobrenome é porque Temüjin (o nome de batismo de Genghis Khan) o aconselhou a fazê-lo. Sim. Ele não só conversa com Genghis Khan mas, aparentemente, ambos são tão “brothers” que ele pode se dar ao luxo de chamar o fundador do Império Mongol pelo nome de batismo.

Falando nos pais de Tssui, Florence e William Tsui, eles são a razão pela qual Eugene projetou e construiu o Fish House. Ele queria construir a casa mais segura possível para eles, uma que pudesse resistir a fogo, tempestades, furacões, enchentes, terremotos e todo outro tipo de desastre natural. Ele queria que a casa fosse indestrutível.

Como um ferrenho defensor da Arquitetura Evolucionária (ele inclusive escreveu um livro sobre isso, intitulado Evolutionary Architecture: Nature as a Basis for Design), ele foi atrás da Mãe Natureza para encontrar inspiração e orientação. Como a maioria dos pensadores conceituais, ele começou sua jornada criativa fazendo perguntas.

E a primeira pergunta que ele se fez foi: qual o ser vivo mais indestrutível da Natureza?
A resposta: o tardígrado.

O tardígrado, também conhecido por “Urso d’Água” (na boa gente, existe apelido mais legal que esse?), é um animal microscópico de oito patas, praticamente invisível a olho nu. Sabem quando algumas pessoas dizem que quando o mundo acabar em um cataclisma nuclear, os únicos sobreviventes serão as baratas?

Eu não sei se essas pessoas estão certas ou erradas. Mas de uma coisa eu sei: se um dia o mundo sofrer um apocalipse tão poderoso que extermine até as baratas que sobreviveram, os tardígrados continuarão aqui. Relaxando. De óculos escuros. Com sete patinhas pro ar. E a oitava segurando uma cervejinha gelada. ;o)

Um artigo da BBC, publicado em 2015, os descreveu da seguinte forma: “Ferva-os, congele-os, esmague-os, desidrate-os, mande-os para o espaço: tardígrados sobreviverão a tudo isso e ainda vão pedir bis”. Mas vamos entrar em detalhes. O que exatamente o artigo quer dizer com “ferva-os”, “congele-os”, “esmague-os”, etc?

Bem, de acordo com o site da National Geographic, tardígrados podem sobreviver a temperaturas que vão de –272,95 °C  (gente, isso é quase zero Kelvin, ou seja, o zero absoluto!) a 150 °C. Eles podem agüentar uma pressão seis vezes maior do que aquelas encontradas nas fossas mais profundas do oceano. Ou seja, são seis Fossas Marianas empilhadas, uma sobra a outra, em cima do bichinho. E acreditem ou não, isso não é tudo.

Eles também podem passar 30 anos sem comer ou beber. São capazes de resistir a doses altíssimas de radiação (de raios X a raios ultravioletas). E como se tudo isso não fosse o bastante, em 2007, eles foram enviados ao espaço, onde passaram 10 dias em condições tão extremas, que matariam um ser humano em minutos. E voltaram à Terra como se nada tivesse acontecido.

Mas existe um motivo para eles serem tão durões assim. A razão pela qual tardígrados são capazes de sobreviver a condições e ambientes tão inóspitos é por causa da sua capacidade de entrar em estado de anhydrobiosis. Essa palavra vem do grego antigo: hydro quer dizer água, bíos quer dizer vida e o prefixo an- quer dizer “não”.

Isso significa que, neste estado, tardígrados espremem toda a água para fora de seus corpos, retraem suas cabeças e patas até quase virarem uma bolinha e entram em estado dormente. Eles ficam tão desidratados, que ficam enrugados como uma uva-passa. Porém, a maioria das proteínas precisa de água para funcionar, então, para protegerem suas proteínas, os tardígrados basicamente “envidraçam” (!) suas entranhas.

Pronto. Agora, em estado de anhydrobiosis, eles estão praticamente mortos. Eles simplesmente estão lá, com seus corpos pausados no tempo, esperando as condições melhorarem para que eles possam se desenrolar e então, seguir em frente e tocar a vida.

Em outras palavras, Tssui desenhou a casa de seus pais baseado no Chuck Norris do Reino Animal. ;o)

Agora, nas imagens abaixo, da esquerda para a direita, por favor, façam o seguinte:
Primeiro, dêem uma olhada no tardígrado, o animal
Em seguida, vamos ver o croquis, criado pela Tssui’s Design and Research Company.
Finalmente, vamos conferir o produto final, a Fish House.

Vocês conseguem ver que nessa transição - do animal para o croquis para a casa construída -, a forma e a aparência externa do Tardígrado está lá, relativamente preservada, certo?

Em alguns círculos, isso é chamado de arquitetura biomimética (o nome é auto-explicativo).

Dada a sua paixão pela Natureza, num primeiro instante, eu imaginei que Tssui seria um dos maiores exemplos de arquitetos biomiméticos. Mas não é o caso. Eu estava errado. Ironicamente, ele é um dos mais ferozes críticos dessa escola de pensamento.

Em 2012, em uma entrevista com a State University of New York College of Environmental Science and Forestry (SUNY-ESF), Tssui explicou ao fisiologista americano Scott Turner porque ele não se considera um arquiteto biomimético. Está neste vídeo, de 7’00” – 12’00”.

“Esses arquitetos estão apenas copiando o molde e a forma, a aparência externa. Eles estão abordando a arquitetura como algo decorativo. E isso é o oposto do que estou tentando fazer. Estou tentando entender POR QUE certas formas foram construídas do jeito que foram. (…)
Além disso, também estou tentando entender como esses
conceitos na Natureza podem ser utilizados no nosso dia-a-dia. (…)
Não estou apenas copiando formas por diversão. Eu não estou dizendo ‘oh, já que se trata de um ‘design biológico’, então basta parecer um peixe, ou parecer um tardígrado ou uma enguia. Não é isso que estou fazendo. Estou tentando
entender o pensamento por trás da criação dessas coisas vivas. E então, buscando maneiras de aplicar esses conceitos, esses pensamentos. (…)
Estou tentando entender todo o processo da estrutura.
A RAZÃO pela qual ela existe. Não apenas a sua aparência.
E essa é uma enorme diferença.”

 
Estou tentando entender POR QUE certas formas foram construídas do jeito que foram (…) entender como CONCEITOS na Natureza podem ser utilizados no nosso dia-a-dia. (…) Entender o PENSAMENTO POR TRÁS da criação dessas coisas vivas. Estou tentando entender todo o processo da estrutura: a RAZÃO pela qual ela existe; não apenas a sua aparência.
— Eugene Tssui
 

Sim, Tssui é um arquiteto. Mas primeiro e acima de tudo, ele é um pensador conceitual.
O que chama sua atenção é o porquê do processo. É a razão pela qual algo está sendo feito do jeito que está sendo feito.
É o pensamento por trás da empreitada criativa. Ele não olha para um animal ou uma planta e pensa na forma primeiro, para então pensar na função.
Eugene Tssui pensa na função primeiro, e na forma depois.

Precisa de um telhado que ofereça ventilação e aquecimento conforme necessário? (Função)
Fácil. Basta criarmos um teto retrátil articulado inspirado nas asas de uma libélula. (Forma)
Voilà! Sejam bem vindos à Residência Reyes, na cidade de Oakland, na California.

Buscando minimizar emissões de carbono e reduzir as contas de gás e energia? (Função)
Sem problemas. É só construir 10 painéis de parede que abram e fechem de acordo com as mudanças de temperatura, umidade, clima e luz natural. Mm... Vejamos. O que abre e fecha conforme necessário na Natureza? Ah, sim. Mas é claro. A planta carnívora Dioneia. (Forma)
Presto! Sejam bem-vindos à Residência ZED, aos pés do Monte Sasha, na Califórnia do Norte.

No caso da Fish House, o objetivo era construir a casa mais indestrutível de todos os tempos. (Função).
E a resposta veio na forma de um Tardígrado. (Forma)

O Tardígrado tem uma forma oval. Então, ao curvar contornos da casa, Tssui a protegeu contra o vento. Variando de 0,3 a 0,5 mm, o Tardígrado tem um plano corporal bastante compacto e meio que se parece com um organismo unicelular (embora não seja). Assim, todos os pisos, paredes e tetos do Fish House foram construídos como uma única unidade, como uma única peça, uma vez que esse tipo de construção contínua dissipa a força que tremores dos terremotos podem exercer sobre uma casa.

A California também é conhecida por seus incêndios devastadores. Então, o Fish House tinha de ser à prova de fogo. A essa altura, a gente já sabe que tardígrados resistem a temperaturas altíssimas. Mas eles não são à prova de fogo. E agora?

Felizmente, a essa altura também sabemos que no que diz respeito ao pensamento conceitual, a função sempre vem antes da forma. A forma existe para servir à função, e não o oposto.

E se a função vem primeiro, e neste caso, a forma do tardígrado não serve à função de tornar a casa à prova de fogo, então Tssui tinha de encontrar uma solução diferente. O que, de fato, ele fez. E essa solução veio na forma de um cactus (ahhh, a Mãe Natureza não desaponta jamais!).

Alguns cactus são conhecidos por serem resistentes ao fogo, devido à quantidade total de umidade que contêm em relação ao seu peso seco. Tal qual às plantas suculentas, os cactus têm a capacidade de armazenar água, o que significa que eles não pegam fogo tão facilmente e mesmo quando pegam, demoram para queimar. Além disso, alguns cactus podem até fechar os poros para evitar a perda excessiva de água.

Em outras palavras, a estrutura interna de alguns cactus não é oca. Pelo contrário: por dentro, os cactus estão cheios d’água e eles tentam de tudo para permanecer assim. Inspirado nisso, Tssui usou blocos de copos de isopor reciclados (reforçados com concreto e hastes de aço) para construir a Fish House. E os blocos de isopor são unidos de maneira tão compacta que não permitem a entrada ou passagem de ar, tornando-os à prova de fogo. O revestimento de plástico garante que eles também sejam à prova d'água. 

No último post, vimos como um croquis – conceitualmente falando – não é a versão rudimentar de um projeto final, mas sim, a síntese de um projeto final. É o caso da Fish House.

Por fora, não se trata da forma do Tardígrado, mas de sua essência.
Por dentro, não se trata apenas da estrutura do cactus, mas de sua essência.

Em outras palavras, existe um motivo e uma razão por trás de cada elemento do Fish House. Por trás de cada janela, cada rampa, cada forma, cada decisão, existe um porquê.

Bom, eu sou o primeiro a admitir: esteticamente, as três construções (a residência Reyes, a residência ZED e o Fish House) têm um visual completamente alienígena, apesar de todas terem sido inspiradas na Natureza. Alguns de vocês podem achar a aparência delas bastante exótica. Alguns de vocês podem até considerá-la assustadora.

Mas uma coisa é inegável. Não importa qual seja a nossa opinião a respeito do design dessas casas, é preciso reconhecer que elas são (e continuam sendo) impossivelmente originais. E “impossibilidade” e “originalidade” parecem ser as principais forças motrizes por trás do cérebro implacavelmente inquisitivo de Eugene Tssui.

“Há algo de único e especial nas coisas que nunca foram consideradas. O verdadeiro sucesso acontece quando você está fazendo algo que nunca foi considerado antes. É nesse momento que você sabe que está no caminho certo: porque você deu origem a  algo novo. (...) Você contribuiu com algo, você injetou algo na consciência da possibilidade. (...) Você está tornando o impossível possível. E é justamente aí que você sabe que está fazendo algo significativo ”.

Esse trecho está em um vídeo publicado em 22 de setembro de 2020, intitulado “A Spontaneous Conversation with Dr. Eugene Tssui”, que você pode assistir abaixo. Caso queira ir direto para este trecho, está no intervalo de 7’00” a 11’00”.

Ok. Chega. Hora de contar a verdade.

Eu estou escrevendo este texto interminável sobre Tssui, seus designs e tudo mais, mas a verdade é que eu não entendo nada de nada de arquitetura. De verdade. Tudo que eu sei são alguns nomes de construções famosas e de alguns arquitetos famosos. Um deles é um cara chamado Frank Lloyd Wright (um nome que até hoje eu confundo com Andrew Lloyd Webber, o compositor). Eu sei... fazer esse tipo de confusão não é NADA COOL! Mas até aí, meu nome é Eugene então,... o que vocês estavam esperando? ;o)

Frank Lloyd Wright é considerado um dos maiores arquitetos de todos os tempos. Sua carreira durou sete décadas. Ou seja, foram SETENTA ANOS de trabalho criativo, projetando prédios e construções como o Museu Guggenheim, de NYC.

Bom, com toda essa experiência, talento e legado, acho que seria correto afirmar que se havia alguém capaz de identificar (e julgar) criatividade, esse alguém era Frank Lloyd Wright, certo? Pois bem, de acordo com uma edição de 1951 da revista Life, um dos poucos e únicos arquitetos americanos que Wright considerava verdadeiramente criativo era um certo Bruce Goff.

E quando Wright diz que alguém é criativo, o mínimo que devemos fazer é lhe conceder o benefício da dúvida. É nossa obrigação checar, nem que seja apenas para nossa própria edificação. Para nosso próprio crescimento intelectual. Então, foi o que eu fiz. Eu dei um Google. Fui ver quem era esse tal de Bruce Goff. Li sobre ele. Vi suas obras. E posso afirmar: o homem não era só criativo.

O homem era um doido varrido. E também foi mentor de Eugene Tssui.

Bruce Goff ensinou Tssui durante 6 anos consecutivos.
Justamente, durante os anos de formação de Tssui, após o colegial.
Tudo está começando a fazer sentido agora, né?

Extraordinário. Genial. Brilhante. Selvagem. Criativo. Experimental. Inovador. Esses eram e ainda são os adjetivos mais usados para descrever Goff e o conjunto de sua obra. No entanto, a palavra mais comumente associada a seu nome e seu legado é ORIGINAL.

A ênfase que ele dava à originalidade reflete o valor e a importância que ele colocava na conceituação. Um artigo de 2011, escrito por Arn Henderson e intitulado “Teaching the Organic” nos mostra como Goff enxergava o processo criativo e o papel do conceito neste processo. De acordo com Henderson:

“Goff insistia que os alunos tinham ‘o direito de ter suas próprias ideias’. 
No entanto, eles também eram encorajados a serem curiosos e a
manter a mente aberta na conceituação. Eles jamais deveriam ter medo de tentar outras coisas. Nenhuma forma, cor ou textura deveria ser tabu. Mas à medida que a semente de uma ideia ia se desenvolvendo, era imperativo que eles reconhecessem e compreendessem a ordem dentro dessa ideia. (…)   
A única maneira de alcançar
originalidade, e o potencial para riqueza e variedade de expressão, era por meio de um entendimento crítico: alcançar a ordem em um projeto dependia do aluno ter a disciplina de rejeitar tudo aquilo que não fosse fiel à ideia. Era por meio de um processo de descoberta que se chegava a uma expressão honesta. 
Este era o significado por trás da expressão "disciplina na liberdade” (discipline in freedom), frequentemente usada por Goff.
Em última análise, a criatividade só poderia ser alcançada por meio da intuição, do pensamento racional e do
descarte de ideias que não sustentassem a ordem do conceito inicial. (…)  Na opinião de Goff, era obrigatório reconhecer essa ‘ordem de desenvolvimento’ a todo instante.
Uma ideia conceitual tinha vida própria e precisava ser alimentada”.

O que Goff está dizendo é que tudo gira em torno do conceito.
As coisas começam com ele.
E terminam com ele.

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E se existe um aluno que levou esse ensinamento absolutamente a sério, foi Eugene Tssui. E eu posso provar: no vídeo de 2020 que postei acima, “A Spontaneous Conversation with Dr. Eugene Tssui”, eis o que Tssui disse sobre a “conceituação vs. construção” do Fish House.

“É interessante… porque quando criei o design desta casa, eu pesquisei bastante. Foi uma solução para muitos problemas que me foram dados pelos meus pais, por outras pessoas e até pelo próprio ambiente. Porém, o processo de construção da casa em si é um pouco anticlimático, porque você já havia pensado e refletido sobre o resultado final. 

Portanto, é no PROCESSO DE CONCEITUAÇÃO que você se encontra naquele momento em que está realmente criando algo que parece ser impossível, e tornando-o possível. 

Uma vez que você começa a desenhar tudo aquilo que já imaginou, e começa a passar para o papel e a resolver os detalhes, então – para mim –, é quase uma espécie de processo anticlimático. Nada mais é novo. Você já sabe como a casa será quando você terminar de construí-la. Porque já pensou sobre ela. Já a imaginou.(…) 

A conceituação é a parte mais poderosa da criação.
Portanto, tudo tem a ver com o conceito: o poder do conceito, a qualidade do conceito.
Não é tanto o resultado na esfera tridimensional. (…) 

Essa é a grande ironia. Você está tentando concretizar esse tal do "tornar o impossível possível". E então, quando a coisa finalmente se torna possível (na sua cabeça), quando você encontra a solução criativa (mentalmente), pronto. Agora é só uma questão de fazer acontecer.   

É a ironia; é o paradoxo da vida. Sempre procuramos a grama mais verde e quando encontramos, pensamos "caramba, quer saber? eu realmente me lembro daqueles dias em que eu estava na luta, ralando; e era muito divertido fazer parte dessa luta". 

Claro que eu não estou dizendo que devemos voltar àqueles dias e que devemos apenas sofrer e lutar; mas estou dizendo, sim, que uma vez que você sonha com o conceito, essa realmente é a parte mais atraente de todo o processo ” .

 
É no PROCESSO DE CONCEITUAÇÃO que você se encontra naquele momento em que está realmente criando algo que parece ser impossível, e tornando-o possível.  A conceituação é a parte mais poderosa da criação. Portanto, tudo tem a ver com o conceito: o poder do conceito, a qualidade do conceito.
— Eugene Tssui
 

Goff provavelmente está no céu, sorrindo por saber que ensinou seu aluno direitinho.

Eu sei que eu estou. Sorrindo, quero dizer. Porque quando Tssui disse essas palavras, foi a primeira vez que ouvi alguém verbalizar algo que eu sinto há anos (para não dizer décadas), mas que nunca consegui explicar: que, para mim, o que de fato conta é o processo de conceituação. De alguma maneira, uma vez que a ideia conceitual nasce, todo o restante parece...secundário. Eu sei, soa errado e até feio dizer isso. Mas é assim que eu me sinto.

Talvez isso seja apenas um tipo diferente de Síndrome do Eugene. Sabe? Essa coisa de ligar apenas para o conceito e nada mais. Sei lá. Vai entender. Como alguns de vocês provavelmente sabem, o nome Eugene significa “bem nascido”. Então, quem sabe seja isso. Talvez o que nos interesse verdadeiramente seja apenas aquele momento único, especial e insubstituível, em que algo surge do nada. Em que o impossível se torna possível. Em que uma página em branco se torna um croquis

O momento em que uma ideia – um conceito – finalmente nasce.

E nasce fazendo jus aos “Eugenes” desse mundo.

Ou seja: nasce bem.


Ps: Uma das construções mais icônicas de Buce Goff é uma casa conhecida como Bavinger House. Aqui vão algumas fotos.
A casa é excêntrica, estapafúrdia e (literalmente) torta. Agora, dada a bizarrice da casa, adivinhem o nome do dono.
Dica: o sobrenome dele é Bavinger. Agora adivinhem o primeiro nome. Vocês têm uma chance. ;o)