A Casa Indestrutível

Olá, meu nome é Eugene. Muito prazer.  

Sejamos honestos, vai? É um nome um tanto esquisito esse meu, né? Sei lá. Eu acho. Considerando que eu nasci e cresci no Brasil, até hoje não sei por que meus pais inventaram de me dar esse nome. Também não sei quantas vezes tive a seguinte conversa ao longo da minha vida.

Pessoa: Oi, qual é o seu nome?
Eu: Eugene
Pessoa: Ah, prazer Eugênio.
Eu: Não. Eugene.
Pessoa: Como?
Eu: Nada não. Esquece. Eugênio tá bom.

Conforme o tempo foi passando, fui percebendo que não é só o nome Eugene que é meio esquisito. Parece que quem carrega esse nome também tende a ser. Em outras palavras, se algo ou alguém se chama Eugene, provavelmente é meio bizarro. Meio estranho. Como um dos meus xarás uma vez disse: “Não dá pra ser cool com um nome como Eugene.”

A pessoa que disse isso é um cara de dupla cidadania (canadense e americana) chamado James Eugene Carrey. Ele é ator. A maioria de vocês o conhece como Jim Carrey. Sim. O próprio. O Máscara. Ele mesmo. No dia 15 de maio de 1994, ele deu uma entrevista ao jornal Los Angeles Times, e falou sobre como se sentia constrangido com toda a fama de ser uma estrela de Hollywood. Eis o que ele disse:

“Minha vida é uma sucessão de momentos constrangedores. Eu já participei de premières e tentei dar uma de cool, saindo antes de todo mundo, apenas para dar de cara com o motorista da limusine, que esqueceu a chave dentro do carro, com o carro ligado. Lá estava eu, trancado para fora do carro, enquanto todo mundo saía do cinema me olhando.

Eu chamo isso de Síndrome do Eugene. Meu nome do meio é Eugene e eu acho que meus pais me deram esse nome para me manter humilde. Não dá pra ser cool com um nome como Eugene”.

Jim Carrey participou de um filme, lançado em 2000, chamado “Me, Myself and Irene”, dirigido pelos irmãos Farrelly. Carrey interpreta um policial estadual chamado Charlie, que sofre com dupla personalidade. De um lado, temos Charlie, que é amável e super gentil. Do outro, temos Hank, o alter-ego desequilibrado e sem noção de Charlie.

Cinco anos após o lançamento do filme de Jim Carrey, em 2005, um dos meus Eugenes favoritos no mundo lançou seu próprio filme, um documentário chamado “Mick, Myself and Eugene”. Eu estou falando sobre o surfista mais rápido de todos os tempos, e 3 vezes campeão mundial de surf, o australiano Michael Eugene Fanning, também conhecido como Mick Fanning.

Este documentário nos mostra os três lados de Mick: “Mick” é o atleta campeão super competitivo, “Myself” é o free surfer de espírito elevado que faz do surf a sua religião, e “Eugene” é o louco desvairado que adora uma festa. Eugene, claro, é aquele que sai do controle e não só atrapalha a brilhante carreira profissional de “Mick”, mas também tira o “Myself” do seu estado zen.

Dizem que três é o número mágico, então vamos ao terceiro e último exemplo.

Existe um negócio chamado Teatro do Absurdo. Já ouviram falar? É um movimento artístico do final dos anos 50, onde as peças de teatro contavam histórias sobre a condição humana, ora pendendo para o existencialismo, ora pendendo para o niilismo. Ou seja, coisa de maluco.

Isso dito, acho que não será surpresa para vocês quando eu disser que uma das características mais prevalentes desse movimento era a de que nada seguia uma ordem lógica e tudo soava e parecia meio sem nexo, dos temas das peças aos diálogos entre os personagens. Pensando bem, não é à toa que o nome do movimento contém a palavra “Absurdo”.

Bom, como que por acaso, um dos maiores pilares e ícones deste movimento foi um cara nascido na Romênia, mas criado na França. Ele era dramaturgo. Seu nome? Adivinhem. Que nome rima com absurdo? Pois é. Eugene. Mas o cara era francês, então, na verdade era Eugène. Seu nome completo? Eugène Ionesco.

Acho que provei meu ponto, né?

Bom, a razão pela qual eu fiz questão de trazer esses Eugenes um tanto quanto peculiares e idiossincráticos à tona é porque eu queria preparar vocês antes de apresentá-los a um dos nossos xarás mais talentosos, inteligentes e não-convencionais: o arquiteto americano de ascendência chinesa Eugene Tssui (pronuncia-se T-sway).

Ele é a mente por trás do famoso (e insólito) design do Fish House, localizada na cidade de Berkeley, na California. A casa não parece um peixe, então, não sei por que ela se chama Fish House. Ela também é conhecida como “Ojo Del Sol” (que significa Olho do Sol, em espanhol). O que também não faz o menor sentido, uma vez que a casa não se parece com um olho e muito menos com o Sol.

Vocês já ouviram falar de uma série do Netflix chamada The Good Place? É maravilhosa e eu super recomendo. Enfim, há um episódio deste série em que um dos protagonistas diz que sofre de algo que os médicos chamam de “Insanidade Direcional”, alegando uma vez ter se “perdido em uma escada rolante”. Sou eu. Eu sofro disso. Eu não sei ler mapas. Eu me perco em todo e qualquer lugar. E eu sou daqueles que considera o Waze a melhor invenção de todos os tempos. ;o)

A primeira vez em que bati os olhos no Fish House foi por causa da minha insanidade direcional. O ano era 2001 e eu era um estudante em UC Berkeley. Estava digirindo em uma avenida chamada San Pablo, tentando chegar em uma outra avenida chamada Ashby. Essas avenidas se cruzam, então, na verdade, tudo que eu precisava fazer era dirigir em linha reta. Mas ainda assim, de alguma forma, eu me perdi e fui parar em uma rua chamada Matthews. Mais precisamente, no nº 2747 da Matthews Street, o endereço do Fish House.

Quando vi a casa de longe pela primeira vez, não conseguia acreditar no que meus olhos estavam vendo. Parecia algo de outro mundo. Primeiro, achei que fosse uma casa feita no formato de um cogumelo. Depois, passei na frente de novo e, dessa vez, parecia uma concha de caracol. Finalmente, resolvi passar uma terceira vez, e nessa última vez, por alguma razão, meu cérebro enxergou a casa como uma espécie de concha de Nautilus cortada ao meio, na transversal. Enfim. Vocês entenderam, né? Era surreal. Inusitado. Mas mais importante, era completa e absolutamente original.

Dr. Eugene Tssui, como a maioria dos Eugenes (e eu me incluo nessa) é um desses caras meio esdrúxulos, que às vezes causam espanto, às vezes causam riso, e frequentemente causam ambos. E que por esse motivo, costumam passar a impressão de serem meio, digamos, desajustados. No caso de Tssui, é difícil descrevê-lo. Alguns o vêem como um gênio. Outros o chamam de visionário. A maioria o considera um polímata.

Pessoalmente, eu o vejo como uma espécie de Ziggy Stardust Asiático, levando seus Spiders from Mars em uma estranhíssima Viagem ao Centro da Terra, Rick Wakeman bombando nas caixas e sonhos de Picasso, Matisse e Charisse pulsando em sua mente.

Ele é um atleta, mas também é músico. É um artista marcial que dança Flamenco. É um medalhista olímpico e um designer premiado. Algumas pessoas dizem que ele vem de outro planeta e ele simplesmente dá de ombros. Ele venceu 8 vezes o campeonato mundial de boxe amador. E quando suas mãos não estão amassando a cara de alguém, estão tocando Chopin no piano.

Academicamente, seu caminho também é sem paralelos. Ele foi expulso do programa de mestrado da Columbia University, em NYC, porque – segundo o reitor do departamento de arquitetura –, “eles não poderiam ensinar o que ele queria aprender”. Então, Tssui mandou a Costa Leste às favas e voou rumo ao Oeste.

Recomeçou seu mestrado, dessa vez, na University of Oregon, localizada na cidade de Eugene. Isso mesmo. A cidade de Eugene, no estado de Oregon. Bom, com um nome desses, era de se imaginar que ele seria acolhido – ou pelo menos, aceito – lá, né? Pois é. Só que não. Ele foi expulso de novo, dessa vez, por “diferenças conceituais”. Não falei? Eu avisei... Eugene é tudo esquisito.

Finalmente, ele acabou parando em UC Berkeley (go Bears!), o berço do “Movimento da Liberdade de Expressão”, onde sua abordagem incomum e seu trabalho super imaginativo foram não apenas tolerados, mas encorajados.

 
 

Tssui é de origem chinesa (seus pais possuem raízes em Beijing e em Shanghai), mas se identifica muito mais com a Mongólia. Tanto que ele diz que a razão pela qual ele adicionou um “s” ao seu sobrenome é porque Temüjin (o nome de batismo de Genghis Khan) o aconselhou a fazê-lo. Sim. Ele não só conversa com Genghis Khan mas, aparentemente, ambos são tão “brothers” que ele pode se dar ao luxo de chamar o fundador do Império Mongol pelo nome de batismo.

Falando nos pais de Tssui, Florence e William Tsui, eles são a razão pela qual Eugene projetou e construiu o Fish House. Ele queria construir a casa mais segura possível para eles, uma que pudesse resistir a fogo, tempestades, furacões, enchentes, terremotos e todo outro tipo de desastre natural. Ele queria que a casa fosse indestrutível.

Como um ferrenho defensor da Arquitetura Evolucionária (ele inclusive escreveu um livro sobre isso, intitulado Evolutionary Architecture: Nature as a Basis for Design), ele foi atrás da Mãe Natureza para encontrar inspiração e orientação. Como a maioria dos pensadores conceituais, ele começou sua jornada criativa fazendo perguntas.

E a primeira pergunta que ele se fez foi: qual o ser vivo mais indestrutível da Natureza?
A resposta: o tardígrado.

O tardígrado, também conhecido por “Urso d’Água” (na boa gente, existe apelido mais legal que esse?), é um animal microscópico de oito patas, praticamente invisível a olho nu. Sabem quando algumas pessoas dizem que quando o mundo acabar em um cataclisma nuclear, os únicos sobreviventes serão as baratas?

Eu não sei se essas pessoas estão certas ou erradas. Mas de uma coisa eu sei: se um dia o mundo sofrer um apocalipse tão poderoso que extermine até as baratas que sobreviveram, os tardígrados continuarão aqui. Relaxando. De óculos escuros. Com sete patinhas pro ar. E a oitava segurando uma cervejinha gelada. ;o)

Um artigo da BBC, publicado em 2015, os descreveu da seguinte forma: “Ferva-os, congele-os, esmague-os, desidrate-os, mande-os para o espaço: tardígrados sobreviverão a tudo isso e ainda vão pedir bis”. Mas vamos entrar em detalhes. O que exatamente o artigo quer dizer com “ferva-os”, “congele-os”, “esmague-os”, etc?

Bem, de acordo com o site da National Geographic, tardígrados podem sobreviver a temperaturas que vão de –272,95 °C  (gente, isso é quase zero Kelvin, ou seja, o zero absoluto!) a 150 °C. Eles podem agüentar uma pressão seis vezes maior do que aquelas encontradas nas fossas mais profundas do oceano. Ou seja, são seis Fossas Marianas empilhadas, uma sobra a outra, em cima do bichinho. E acreditem ou não, isso não é tudo.

Eles também podem passar 30 anos sem comer ou beber. São capazes de resistir a doses altíssimas de radiação (de raios X a raios ultravioletas). E como se tudo isso não fosse o bastante, em 2007, eles foram enviados ao espaço, onde passaram 10 dias em condições tão extremas, que matariam um ser humano em minutos. E voltaram à Terra como se nada tivesse acontecido.

Mas existe um motivo para eles serem tão durões assim. A razão pela qual tardígrados são capazes de sobreviver a condições e ambientes tão inóspitos é por causa da sua capacidade de entrar em estado de anhydrobiosis. Essa palavra vem do grego antigo: hydro quer dizer água, bíos quer dizer vida e o prefixo an- quer dizer “não”.

Isso significa que, neste estado, tardígrados espremem toda a água para fora de seus corpos, retraem suas cabeças e patas até quase virarem uma bolinha e entram em estado dormente. Eles ficam tão desidratados, que ficam enrugados como uma uva-passa. Porém, a maioria das proteínas precisa de água para funcionar, então, para protegerem suas proteínas, os tardígrados basicamente “envidraçam” (!) suas entranhas.

Pronto. Agora, em estado de anhydrobiosis, eles estão praticamente mortos. Eles simplesmente estão lá, com seus corpos pausados no tempo, esperando as condições melhorarem para que eles possam se desenrolar e então, seguir em frente e tocar a vida.

Em outras palavras, Tssui desenhou a casa de seus pais baseado no Chuck Norris do Reino Animal. ;o)

Agora, nas imagens abaixo, da esquerda para a direita, por favor, façam o seguinte:
Primeiro, dêem uma olhada no tardígrado, o animal
Em seguida, vamos ver o croquis, criado pela Tssui’s Design and Research Company.
Finalmente, vamos conferir o produto final, a Fish House.

Vocês conseguem ver que nessa transição - do animal para o croquis para a casa construída -, a forma e a aparência externa do Tardígrado está lá, relativamente preservada, certo?

Em alguns círculos, isso é chamado de arquitetura biomimética (o nome é auto-explicativo).

Dada a sua paixão pela Natureza, num primeiro instante, eu imaginei que Tssui seria um dos maiores exemplos de arquitetos biomiméticos. Mas não é o caso. Eu estava errado. Ironicamente, ele é um dos mais ferozes críticos dessa escola de pensamento.

Em 2012, em uma entrevista com a State University of New York College of Environmental Science and Forestry (SUNY-ESF), Tssui explicou ao fisiologista americano Scott Turner porque ele não se considera um arquiteto biomimético. Está neste vídeo, de 7’00” – 12’00”.

“Esses arquitetos estão apenas copiando o molde e a forma, a aparência externa. Eles estão abordando a arquitetura como algo decorativo. E isso é o oposto do que estou tentando fazer. Estou tentando entender POR QUE certas formas foram construídas do jeito que foram. (…)
Além disso, também estou tentando entender como esses
conceitos na Natureza podem ser utilizados no nosso dia-a-dia. (…)
Não estou apenas copiando formas por diversão. Eu não estou dizendo ‘oh, já que se trata de um ‘design biológico’, então basta parecer um peixe, ou parecer um tardígrado ou uma enguia. Não é isso que estou fazendo. Estou tentando
entender o pensamento por trás da criação dessas coisas vivas. E então, buscando maneiras de aplicar esses conceitos, esses pensamentos. (…)
Estou tentando entender todo o processo da estrutura.
A RAZÃO pela qual ela existe. Não apenas a sua aparência.
E essa é uma enorme diferença.”

 
Estou tentando entender POR QUE certas formas foram construídas do jeito que foram (…) entender como CONCEITOS na Natureza podem ser utilizados no nosso dia-a-dia. (…) Entender o PENSAMENTO POR TRÁS da criação dessas coisas vivas. Estou tentando entender todo o processo da estrutura: a RAZÃO pela qual ela existe; não apenas a sua aparência.
— Eugene Tssui
 

Sim, Tssui é um arquiteto. Mas primeiro e acima de tudo, ele é um pensador conceitual.
O que chama sua atenção é o porquê do processo. É a razão pela qual algo está sendo feito do jeito que está sendo feito.
É o pensamento por trás da empreitada criativa. Ele não olha para um animal ou uma planta e pensa na forma primeiro, para então pensar na função.
Eugene Tssui pensa na função primeiro, e na forma depois.

Precisa de um telhado que ofereça ventilação e aquecimento conforme necessário? (Função)
Fácil. Basta criarmos um teto retrátil articulado inspirado nas asas de uma libélula. (Forma)
Voilà! Sejam bem vindos à Residência Reyes, na cidade de Oakland, na California.

Buscando minimizar emissões de carbono e reduzir as contas de gás e energia? (Função)
Sem problemas. É só construir 10 painéis de parede que abram e fechem de acordo com as mudanças de temperatura, umidade, clima e luz natural. Mm... Vejamos. O que abre e fecha conforme necessário na Natureza? Ah, sim. Mas é claro. A planta carnívora Dioneia. (Forma)
Presto! Sejam bem-vindos à Residência ZED, aos pés do Monte Sasha, na Califórnia do Norte.

No caso da Fish House, o objetivo era construir a casa mais indestrutível de todos os tempos. (Função).
E a resposta veio na forma de um Tardígrado. (Forma)

O Tardígrado tem uma forma oval. Então, ao curvar contornos da casa, Tssui a protegeu contra o vento. Variando de 0,3 a 0,5 mm, o Tardígrado tem um plano corporal bastante compacto e meio que se parece com um organismo unicelular (embora não seja). Assim, todos os pisos, paredes e tetos do Fish House foram construídos como uma única unidade, como uma única peça, uma vez que esse tipo de construção contínua dissipa a força que tremores dos terremotos podem exercer sobre uma casa.

A California também é conhecida por seus incêndios devastadores. Então, o Fish House tinha de ser à prova de fogo. A essa altura, a gente já sabe que tardígrados resistem a temperaturas altíssimas. Mas eles não são à prova de fogo. E agora?

Felizmente, a essa altura também sabemos que no que diz respeito ao pensamento conceitual, a função sempre vem antes da forma. A forma existe para servir à função, e não o oposto.

E se a função vem primeiro, e neste caso, a forma do tardígrado não serve à função de tornar a casa à prova de fogo, então Tssui tinha de encontrar uma solução diferente. O que, de fato, ele fez. E essa solução veio na forma de um cactus (ahhh, a Mãe Natureza não desaponta jamais!).

Alguns cactus são conhecidos por serem resistentes ao fogo, devido à quantidade total de umidade que contêm em relação ao seu peso seco. Tal qual às plantas suculentas, os cactus têm a capacidade de armazenar água, o que significa que eles não pegam fogo tão facilmente e mesmo quando pegam, demoram para queimar. Além disso, alguns cactus podem até fechar os poros para evitar a perda excessiva de água.

Em outras palavras, a estrutura interna de alguns cactus não é oca. Pelo contrário: por dentro, os cactus estão cheios d’água e eles tentam de tudo para permanecer assim. Inspirado nisso, Tssui usou blocos de copos de isopor reciclados (reforçados com concreto e hastes de aço) para construir a Fish House. E os blocos de isopor são unidos de maneira tão compacta que não permitem a entrada ou passagem de ar, tornando-os à prova de fogo. O revestimento de plástico garante que eles também sejam à prova d'água. 

No último post, vimos como um croquis – conceitualmente falando – não é a versão rudimentar de um projeto final, mas sim, a síntese de um projeto final. É o caso da Fish House.

Por fora, não se trata da forma do Tardígrado, mas de sua essência.
Por dentro, não se trata apenas da estrutura do cactus, mas de sua essência.

Em outras palavras, existe um motivo e uma razão por trás de cada elemento do Fish House. Por trás de cada janela, cada rampa, cada forma, cada decisão, existe um porquê.

Bom, eu sou o primeiro a admitir: esteticamente, as três construções (a residência Reyes, a residência ZED e o Fish House) têm um visual completamente alienígena, apesar de todas terem sido inspiradas na Natureza. Alguns de vocês podem achar a aparência delas bastante exótica. Alguns de vocês podem até considerá-la assustadora.

Mas uma coisa é inegável. Não importa qual seja a nossa opinião a respeito do design dessas casas, é preciso reconhecer que elas são (e continuam sendo) impossivelmente originais. E “impossibilidade” e “originalidade” parecem ser as principais forças motrizes por trás do cérebro implacavelmente inquisitivo de Eugene Tssui.

“Há algo de único e especial nas coisas que nunca foram consideradas. O verdadeiro sucesso acontece quando você está fazendo algo que nunca foi considerado antes. É nesse momento que você sabe que está no caminho certo: porque você deu origem a  algo novo. (...) Você contribuiu com algo, você injetou algo na consciência da possibilidade. (...) Você está tornando o impossível possível. E é justamente aí que você sabe que está fazendo algo significativo ”.

Esse trecho está em um vídeo publicado em 22 de setembro de 2020, intitulado “A Spontaneous Conversation with Dr. Eugene Tssui”, que você pode assistir abaixo. Caso queira ir direto para este trecho, está no intervalo de 7’00” a 11’00”.

Ok. Chega. Hora de contar a verdade.

Eu estou escrevendo este texto interminável sobre Tssui, seus designs e tudo mais, mas a verdade é que eu não entendo nada de nada de arquitetura. De verdade. Tudo que eu sei são alguns nomes de construções famosas e de alguns arquitetos famosos. Um deles é um cara chamado Frank Lloyd Wright (um nome que até hoje eu confundo com Andrew Lloyd Webber, o compositor). Eu sei... fazer esse tipo de confusão não é NADA COOL! Mas até aí, meu nome é Eugene então,... o que vocês estavam esperando? ;o)

Frank Lloyd Wright é considerado um dos maiores arquitetos de todos os tempos. Sua carreira durou sete décadas. Ou seja, foram SETENTA ANOS de trabalho criativo, projetando prédios e construções como o Museu Guggenheim, de NYC.

Bom, com toda essa experiência, talento e legado, acho que seria correto afirmar que se havia alguém capaz de identificar (e julgar) criatividade, esse alguém era Frank Lloyd Wright, certo? Pois bem, de acordo com uma edição de 1951 da revista Life, um dos poucos e únicos arquitetos americanos que Wright considerava verdadeiramente criativo era um certo Bruce Goff.

E quando Wright diz que alguém é criativo, o mínimo que devemos fazer é lhe conceder o benefício da dúvida. É nossa obrigação checar, nem que seja apenas para nossa própria edificação. Para nosso próprio crescimento intelectual. Então, foi o que eu fiz. Eu dei um Google. Fui ver quem era esse tal de Bruce Goff. Li sobre ele. Vi suas obras. E posso afirmar: o homem não era só criativo.

O homem era um doido varrido. E também foi mentor de Eugene Tssui.

Bruce Goff ensinou Tssui durante 6 anos consecutivos.
Justamente, durante os anos de formação de Tssui, após o colegial.
Tudo está começando a fazer sentido agora, né?

Extraordinário. Genial. Brilhante. Selvagem. Criativo. Experimental. Inovador. Esses eram e ainda são os adjetivos mais usados para descrever Goff e o conjunto de sua obra. No entanto, a palavra mais comumente associada a seu nome e seu legado é ORIGINAL.

A ênfase que ele dava à originalidade reflete o valor e a importância que ele colocava na conceituação. Um artigo de 2011, escrito por Arn Henderson e intitulado “Teaching the Organic” nos mostra como Goff enxergava o processo criativo e o papel do conceito neste processo. De acordo com Henderson:

“Goff insistia que os alunos tinham ‘o direito de ter suas próprias ideias’. 
No entanto, eles também eram encorajados a serem curiosos e a
manter a mente aberta na conceituação. Eles jamais deveriam ter medo de tentar outras coisas. Nenhuma forma, cor ou textura deveria ser tabu. Mas à medida que a semente de uma ideia ia se desenvolvendo, era imperativo que eles reconhecessem e compreendessem a ordem dentro dessa ideia. (…)   
A única maneira de alcançar
originalidade, e o potencial para riqueza e variedade de expressão, era por meio de um entendimento crítico: alcançar a ordem em um projeto dependia do aluno ter a disciplina de rejeitar tudo aquilo que não fosse fiel à ideia. Era por meio de um processo de descoberta que se chegava a uma expressão honesta. 
Este era o significado por trás da expressão "disciplina na liberdade” (discipline in freedom), frequentemente usada por Goff.
Em última análise, a criatividade só poderia ser alcançada por meio da intuição, do pensamento racional e do
descarte de ideias que não sustentassem a ordem do conceito inicial. (…)  Na opinião de Goff, era obrigatório reconhecer essa ‘ordem de desenvolvimento’ a todo instante.
Uma ideia conceitual tinha vida própria e precisava ser alimentada”.

O que Goff está dizendo é que tudo gira em torno do conceito.
As coisas começam com ele.
E terminam com ele.

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E se existe um aluno que levou esse ensinamento absolutamente a sério, foi Eugene Tssui. E eu posso provar: no vídeo de 2020 que postei acima, “A Spontaneous Conversation with Dr. Eugene Tssui”, eis o que Tssui disse sobre a “conceituação vs. construção” do Fish House.

“É interessante… porque quando criei o design desta casa, eu pesquisei bastante. Foi uma solução para muitos problemas que me foram dados pelos meus pais, por outras pessoas e até pelo próprio ambiente. Porém, o processo de construção da casa em si é um pouco anticlimático, porque você já havia pensado e refletido sobre o resultado final. 

Portanto, é no PROCESSO DE CONCEITUAÇÃO que você se encontra naquele momento em que está realmente criando algo que parece ser impossível, e tornando-o possível. 

Uma vez que você começa a desenhar tudo aquilo que já imaginou, e começa a passar para o papel e a resolver os detalhes, então – para mim –, é quase uma espécie de processo anticlimático. Nada mais é novo. Você já sabe como a casa será quando você terminar de construí-la. Porque já pensou sobre ela. Já a imaginou.(…) 

A conceituação é a parte mais poderosa da criação.
Portanto, tudo tem a ver com o conceito: o poder do conceito, a qualidade do conceito.
Não é tanto o resultado na esfera tridimensional. (…) 

Essa é a grande ironia. Você está tentando concretizar esse tal do "tornar o impossível possível". E então, quando a coisa finalmente se torna possível (na sua cabeça), quando você encontra a solução criativa (mentalmente), pronto. Agora é só uma questão de fazer acontecer.   

É a ironia; é o paradoxo da vida. Sempre procuramos a grama mais verde e quando encontramos, pensamos "caramba, quer saber? eu realmente me lembro daqueles dias em que eu estava na luta, ralando; e era muito divertido fazer parte dessa luta". 

Claro que eu não estou dizendo que devemos voltar àqueles dias e que devemos apenas sofrer e lutar; mas estou dizendo, sim, que uma vez que você sonha com o conceito, essa realmente é a parte mais atraente de todo o processo ” .

 
É no PROCESSO DE CONCEITUAÇÃO que você se encontra naquele momento em que está realmente criando algo que parece ser impossível, e tornando-o possível.  A conceituação é a parte mais poderosa da criação. Portanto, tudo tem a ver com o conceito: o poder do conceito, a qualidade do conceito.
— Eugene Tssui
 

Goff provavelmente está no céu, sorrindo por saber que ensinou seu aluno direitinho.

Eu sei que eu estou. Sorrindo, quero dizer. Porque quando Tssui disse essas palavras, foi a primeira vez que ouvi alguém verbalizar algo que eu sinto há anos (para não dizer décadas), mas que nunca consegui explicar: que, para mim, o que de fato conta é o processo de conceituação. De alguma maneira, uma vez que a ideia conceitual nasce, todo o restante parece...secundário. Eu sei, soa errado e até feio dizer isso. Mas é assim que eu me sinto.

Talvez isso seja apenas um tipo diferente de Síndrome do Eugene. Sabe? Essa coisa de ligar apenas para o conceito e nada mais. Sei lá. Vai entender. Como alguns de vocês provavelmente sabem, o nome Eugene significa “bem nascido”. Então, quem sabe seja isso. Talvez o que nos interesse verdadeiramente seja apenas aquele momento único, especial e insubstituível, em que algo surge do nada. Em que o impossível se torna possível. Em que uma página em branco se torna um croquis

O momento em que uma ideia – um conceito – finalmente nasce.

E nasce fazendo jus aos “Eugenes” desse mundo.

Ou seja: nasce bem.


Ps: Uma das construções mais icônicas de Buce Goff é uma casa conhecida como Bavinger House. Aqui vão algumas fotos.
A casa é excêntrica, estapafúrdia e (literalmente) torta. Agora, dada a bizarrice da casa, adivinhem o nome do dono.
Dica: o sobrenome dele é Bavinger. Agora adivinhem o primeiro nome. Vocês têm uma chance. ;o)