Stream of Consciousness
/Há mais ou menos umas três semanas, no post que escrevi sobre o The Stack, da Netflix, mencionamos Platão, o cara da caverna. E falamos especificamente da Teoria das Formas, lembram? Sobre como Platão diz que o universo é feito de “formas” e “particulares”.
Daí, umas duas semanas atrás, no post que escrevi sobre o significado de 概念化 (Gài Niàn Huà), comentei com vocês que – diferente da minha mãe –, nunca me ocorrera enxergar a palavra “projeto” como sinônimo da palavra “conceito”.
Passei as duas últimas semanas pensando nisso.
E cheguei a uma conclusão.
A meu ver, o conceito não é o projeto. Para mim, ele é uma fase do projeto. Ele é PARTE do projeto. E que parte, especificamente?
A parte intelectual, imaterial, intangível e abstrata do projeto.
A parte conceitual do projeto é onde tudo começa a nascer. É o croquis de um novo modelo de roupa ou da planta de uma nova casa. É o sketch de um novo modelo de tênis, ou de uma nova criatura para um filme de ficção científica.
Croquis é uma palavra francesa, cuja definição no dicionário Larousse diz o seguinte: “dessin rapide dégageant, à grands traits, l'essentiel du sujet, du motif”. Não precisa entender tudo. Apenas a palavra em negrito. Essencial.
Sketch é uma palavra inglesa, cuja definição no site dictionary.com diz o seguinte: “a simply executed drawing or painting, especially a preliminary one, giving the essential features without the details”. Mais uma vez, não precisa entender tudo. Apenas a palavra en negrito. Essencial.
E por que o conceito é tão essencial?
Porque é na fase conceitual que o projeto começa a tomar forma.
E eu digo “forma” no mesmo sentido exposto por Platão. É quando acessamos o “plano das formas”. O mundo das ideias. É quando uma folha em branco passa a ganhar vida. Contornos vão sendo rabiscados, sem muita atenção aos detalhes. Palavras randômicas vão sendo anotadas, sem lógica ou razão aparente.
A fase conceitual é aquela em que o criativo mergulha em uma espécie de monólogo interno. Nele, experiências, lembranças, conhecimentos e repertórios são acessados, em um (aparentemente) incompreensível e incoerente processo de stream of consciousness.
Bonita essa expressão, né? Stream of Consciousness.
Eu não sei exatamente qual é a melhor tradução em português para essa expressão. Tem gente que chama de fluxo de consciência. Outros chamam de corrente de pensamentos. Ainda não sei de qual tradução gosto mais (ou se não gosto de nenhuma delas, o que é mais provável), mas sei quando foi a primeira vez que li essas três palavras juntas. Stream. Of. Consciousness.
Foi quando comprei o sétimo álbum da banda americana de rock progressivo Dream Theater, intitulado Train of Thought e lançado em 2003. Trata-se do título da 6ª trilha do álbum. A trilha é instrumental, e tem pouco mais de 11 minutos (pois é, esses roqueiros progressivos e suas composições intermináveis).
Estou falando sobre o disco porque, curiosamente, acho que a melhor tradução para Stream of Consciousness é exatamente o que acontece ao longo dos mais de 11 minutos dessa trilha do Dream Theater. Escutem aqui e vocês verão exatamente do que estou falando.
Um monte de notas e acordes embaralhados, vindo de 4 instrumentos diferentes (baixo, guitarra, teclado e bateria), fluindo de forma aparentemente caótica e anárquica no estúdio, às vezes mais rápido, às vezes mais devagar, ora com mais peso, ora com menos peso, tudo isso em meio a incontáveis trocas de fórmula de compasso. E de alguma forma, no final, tudo faz sentido.
A etapa conceitual de um projeto é meio que isso.
Um monte de informações e pensamentos embaralhados, vindo de 4 fontes diferentes (experiências, lembranças, conhecimento e repertório), fluindo de foma aparentemente caótica e anárquica na nossa cabeça, às vezes passando batido, às vezes chamando nossa atenção, ora com mais força, ora com menos força, tudo isso em meio a incontáveis trocas de ideias. E de alguma forma, no final, tudo faz sentido.
Tem um jeito mais fácil de explicar.
Imagine que você decida tirar uma foto de um estilista ou um arquiteto desenhando um croquis; ou de um diretor de arte ou um designer rabiscando um sketch. Daí, você decide postar essa foto no Instagram. Que legenda você colocaria para acompanhá-la? Ao invés de usar o bom e velho “gênio trabalhando”, use essa aqui: #StreamofConsciousness. Funciona muito melhor. Diz exatamente a mesma coisa. E é bem mais chique. ;o)
Muita gente diz que a parte conceitual do projeto – ou seja, aquela onde nascem os croquis e os sketches –, é a “parte dedicada aos esboços, aos rabiscos, aos rascunhos”. E elas estão certas. É isso mesmo. Mas existe um porém. E este porém refere-se ao valor e à importância que deve ser dada a essa parte conceitual.
Se você pensar e focar apenas no desenho que está rabiscado no papel, sem riqueza de detalhes e muitas vezes com rasuras (seja uma casa, uma peça de roupa, uma criatura de ficção científica ou um par de tênis), a ideia que a palavra esboço transmite é a de “uma versão rudimentar do projeto final”.
Porém... quando você se dá conta de que aquele rabisco é, na verdade, a representação tangível de um Stream of Consciousness intangível, único e inimitável, então, a palavra esboço ganha um novo significado. Muito maior e muito mais valioso. A ideia que “esboço” transmite, neste caso, passa a ser de “síntese do projeto final”.






Tente construir uma casa, costurar uma peça de roupa, fabricar um par de tênis ou desenhar um criatura de um filme de ficção científica SEM CONCEITO... Dá para fazer? Lógico que dá. Mas muito, muito provavelmente, será mais do mesmo. Será apenas mais uma casa. Mais uma peça de roupa. Mais uma criatura alienígena igual a tantas outras. Mais um par de tênis como todos os outros.
Por isso, a fase conceitual de um projeto é tão importante. Tão...essencial.
Porque é nela que surgem as ideias verdadeiramente originais. Os conceitos divisores de águas. É durante esse momento de introspecção criativa que o processo de experimentação do artista tem permissão para fluir de forma livre. É precisamente durante a etapa de conceituação do projeto que o Stream of Consciousness encontra condições para alcançar seu nível mais caudaloso.
Nos próximos posts, veremos alguns exemplos de obras consideradas únicas, icônicas e originais, que não somente transformaram o mundo, mas também a nossa maneira de enxergá-lo e de interagir com ele.
Revisitaremos os contextos nos quais cada uma dessas obras foi concebida. Aprenderemos um pouco mais sobre os artistas que as conceberam. E, finalmente, conheceremos os sketches e croquis que deram origem a elas.
Como vocês verão por si mesmos, às vezes, pode acontecer de o resultado final do projeto não possuir exatamente a forma (no sentido de “aspecto”) proposta originalmente no sketch ou no croquis. É normal. Ajustes, mudanças e acabamentos fazem parte de todo projeto.
Mas como vocês também verão por si mesmos, ainda assim, é perfeitamente possível reconhecer que o resultado final de cada projeto possui, de alguma maneira, a mesma “forma” (agora no sentido platônico da palavra) de seus respectivos sketches e croquis.
Isso acontece porque a essência do projeto ainda está lá.
Literalmente, na forma de um conceito.