Stream of Consciousness

Há mais ou menos umas três semanas, no post que escrevi sobre o The Stack, da Netflix, mencionamos Platão, o cara da caverna. E falamos especificamente da Teoria das Formas, lembram? Sobre como Platão diz que o universo é feito de “formas” e “particulares”.

Daí, umas duas semanas atrás, no post que escrevi sobre o significado de 概念化  (Gài Niàn Huà), comentei com vocês que – diferente da minha mãe –, nunca me ocorrera enxergar a palavra “projeto” como sinônimo da palavra “conceito”.

Passei as duas últimas semanas pensando nisso.
E cheguei a uma conclusão.

A meu ver, o conceito não é o projeto. Para mim, ele é uma fase do projeto. Ele é PARTE do projeto. E que parte, especificamente?  

A parte intelectual, imaterial, intangível e abstrata do projeto.

A parte conceitual do projeto é onde tudo começa a nascer. É o croquis de um novo modelo de roupa ou da planta de uma nova casa. É o sketch de um novo modelo de tênis, ou de uma nova criatura para um filme de ficção científica.

Croquis é uma palavra francesa, cuja definição no dicionário Larousse diz o seguinte: “dessin rapide dégageant, à grands traits, l'essentiel du sujet, du motif”. Não precisa entender tudo. Apenas a palavra em negrito. Essencial.

Sketch é uma palavra inglesa, cuja definição no site dictionary.com diz o seguinte: “a simply executed drawing or painting, especially a preliminary one, giving the essential features without the details”. Mais uma vez, não precisa entender tudo. Apenas a palavra en negrito. Essencial.  

E por que o conceito é tão essencial?
Porque é na fase conceitual que o projeto começa a tomar forma.

E eu digo “forma” no mesmo sentido exposto por Platão. É quando acessamos o “plano das formas”. O mundo das ideias. É quando uma folha em branco passa a ganhar vida. Contornos vão sendo rabiscados, sem muita atenção aos detalhes. Palavras randômicas vão sendo anotadas, sem lógica ou razão aparente.

A fase conceitual é aquela em que o criativo mergulha em uma espécie de monólogo interno. Nele, experiências, lembranças, conhecimentos e repertórios são acessados, em um (aparentemente) incompreensível e incoerente processo de stream of consciousness.

Bonita essa expressão, né? Stream of Consciousness.

Eu não sei exatamente qual é a melhor tradução em português para essa expressão. Tem gente que chama de fluxo de consciência. Outros chamam de corrente de pensamentos. Ainda não sei de qual tradução gosto mais (ou se não gosto de nenhuma delas, o que é mais provável), mas sei quando foi a primeira vez que li essas três palavras juntas. Stream. Of. Consciousness.

 
 

Foi quando comprei o sétimo álbum da banda americana de rock progressivo Dream Theater, intitulado Train of Thought e lançado em 2003. Trata-se do título da 6ª trilha do álbum. A trilha é instrumental, e tem pouco mais de 11 minutos (pois é, esses roqueiros progressivos e suas composições intermináveis).

Estou falando sobre o disco porque, curiosamente, acho que a melhor tradução para Stream of Consciousness é exatamente o que acontece ao longo dos mais de 11 minutos dessa trilha do Dream Theater. Escutem aqui e vocês verão exatamente do que estou falando.

Um monte de notas e acordes embaralhados, vindo de 4 instrumentos diferentes (baixo, guitarra, teclado e bateria), fluindo de forma aparentemente caótica e anárquica no estúdio, às vezes mais rápido, às vezes mais devagar, ora com mais peso, ora com menos peso, tudo isso em meio a incontáveis trocas de fórmula de compasso. E de alguma forma, no final, tudo faz sentido.

A etapa conceitual de um projeto é meio que isso.

Um monte de informações e pensamentos embaralhados, vindo de 4 fontes diferentes (experiências, lembranças, conhecimento e repertório), fluindo de foma aparentemente caótica e anárquica na nossa cabeça, às vezes passando batido, às vezes chamando nossa atenção, ora com mais força, ora com menos força, tudo isso em meio a incontáveis trocas de ideias. E de alguma forma, no final, tudo faz sentido.

 
 

Tem um jeito mais fácil de explicar.

Imagine que você decida tirar uma foto de um estilista ou um arquiteto desenhando um croquis; ou de um diretor de arte ou um designer rabiscando um sketch. Daí, você decide postar essa foto no Instagram. Que legenda você colocaria para acompanhá-la? Ao invés de usar o bom e velho “gênio trabalhando”, use essa aqui: #StreamofConsciousness. Funciona muito melhor. Diz exatamente a mesma coisa. E é bem mais chique. ;o)

Muita gente diz que a parte conceitual do projeto – ou seja, aquela onde nascem os croquis e os sketches –, é a “parte dedicada aos esboços, aos rabiscos, aos rascunhos”. E elas estão certas. É isso mesmo. Mas existe um porém. E este porém refere-se ao valor e à importância que deve ser dada a essa parte conceitual.

Se você pensar e focar apenas no desenho que está rabiscado no papel, sem riqueza de detalhes e muitas vezes com rasuras (seja uma casa, uma peça de roupa, uma criatura de ficção científica ou um par de tênis), a ideia que a palavra esboço transmite é a de “uma versão rudimentar do projeto final”.

Porém... quando você se dá conta de que aquele rabisco é, na verdade, a representação tangível de um Stream of Consciousness intangível, único e inimitável, então, a palavra esboço ganha um novo significado. Muito maior e muito mais valioso. A ideia que “esboço” transmite, neste caso, passa a ser de síntese do projeto final”.    

 
 

Tente construir uma casa, costurar uma peça de roupa, fabricar um par de tênis ou desenhar um criatura de um filme de ficção científica SEM CONCEITO... Dá para fazer? Lógico que dá. Mas muito, muito provavelmente, será mais do mesmo. Será apenas mais uma casa. Mais uma peça de roupa. Mais uma criatura alienígena igual a tantas outras. Mais um par de tênis como todos os outros.

Por isso, a fase conceitual de um projeto é tão importante. Tão...essencial.

Porque é nela que surgem as ideias verdadeiramente originais. Os conceitos divisores de águas. É durante esse momento de introspecção criativa que o processo de experimentação do artista tem permissão para fluir de forma livre. É precisamente durante a etapa de conceituação do projeto que o Stream of Consciousness encontra condições para alcançar seu nível mais caudaloso.

Nos próximos posts, veremos alguns exemplos de obras consideradas únicas, icônicas e originais, que não somente transformaram o mundo, mas também a nossa maneira de enxergá-lo e de interagir com ele.

Revisitaremos os contextos nos quais cada uma dessas obras foi concebida. Aprenderemos um pouco mais sobre os artistas que as conceberam. E, finalmente, conheceremos os sketches e croquis que deram origem a elas.

Como vocês verão por si mesmos, às vezes, pode acontecer de o resultado final do projeto não possuir exatamente a forma (no sentido de “aspecto”) proposta originalmente no sketch ou no croquis. É normal. Ajustes, mudanças e acabamentos fazem parte de todo projeto.  

Mas como vocês também verão por si mesmos, ainda assim, é perfeitamente possível reconhecer que o resultado final de cada projeto possui, de alguma maneira, a mesma “forma” (agora no sentido platônico da palavra) de seus respectivos sketches e croquis.

Isso acontece porque a essência do projeto ainda está lá.  

Literalmente, na forma de um conceito.

Gài Niàn Huà (概念化)

Minha mãe é imigrante Taiwanesa.

Quando chegou ao Brasil, no comecinho dos anos 70, ela já tinha mais de 20 anos. Ou seja, ela foi alfabetizada, educada e criada em chinês. Hoje, quase 50 anos depois, domina a língua portuguesa (que, para quem não sabe, é uma das mais difíceis do mundo) de uma forma que não só me enche de orgulho, mas me inspira, para dizer o mínimo.

Cheio de sotaque, o português dela é daqueles que, por motivos estritamente fonéticos, confunde “cadeira” com “carteira”, “pneu” com “pernil”, “Seattle” (na pronúncia correta da cidade americana) com “Cielo” (a maquininha de cartões). Erros fofos, basicamente. ;o)

E um desses erros aconteceu quando, em uma conversa que tive com ela, faz uns 2 anos, eu disse “conceito”.
Ela entendeu “conserto”.

Motivo pelo qual, durante muito tempo, ela teve dificuldade em entender o que eu estava fazendo profissionalmente. Na cabeça dela, não fazia o menor sentido. Justo eu, que não sei trocar uma lâmpada e nem pregar um quadro, montando uma empresa de conserto?

Finalmente, expliquei que eu não estava montando uma “empresa de consertos”, mas sim, uma “agência de conceitos”. E como era de se esperar, a ficha não caiu imediatamente. E não foi nem por conta do português.

É porque, para quem nunca fez parte de um processo criativo, seja ele qual for (da criação de uma campanha em uma agência de publicidade à criação de uma coreografia em um estúdio de dança) realmente é difícil de entender – e de explicar – o que é o conceito e qual o seu papel no processo de criação.

Naturalmente, a primeira coisa que fiz foi ir no Google Tradutor e digitar “conceituar”.

Pedi a tradução em chinês tradicional, que é aquele usado em Taiwan. A tradução em chinês mandarim foi 概念化  (Gài Niàn Huà). Para ajudar vocês a entenderem essa palavra mais ou menos (bem mais ou menos, hein?) da forma que minha mãe deve ter entendido, vale uma breve explicação.

A palavra 概念化  (Gài Niàn Huà) é formada por 3 ideogramas.

O primeiro ideograma, 概 (Gài), é o mesmo da palavra 大概 (Dà Gài), que quer dizer “provavelmente”, no sentido de não ter 100% certeza, de apenas “fazer/ter uma ideia”.
O segundo ideograma, 念 (Niàn), é o mesmo do 想念 (Xiǎng Niàn), que significa “sentir saudades”, no sentido de “estar pensando em algo ou alguém”. 
Finalmente, o terceiro ideograma, 化 (Huà), significa transformar.

Conceituar em chinês mandarim, segundo o Google Tradutor, é isso.
Tem a ver com ter uma ideia, que ainda não está totalmente definida. 
Tem a ver com pensar em algo, com ter algo em mente.
E tem a ver com essa ideia, na qual estamos pensando, ir se transformando.

É tudo isso, junto e misturado, acontecendo simultaneamente. (Não é à toa que dizem que chinês é o idioma mais difícil do mundo.)  

Engraçado que tudo começou comigo tentando explicar para minha mãe o que significava “conceituar”. E de repente, eu me peguei buscando a ajuda dela, pedindo para ela me explicar, nas palavras dela, o que havia entendido por 概念化  (Gài Niàn Huà).

Misturando português e chinês, eis o que ela me disse:

Ela: É que nem quando você vai montar uma loja. Precisa ter 概念 (Gài Niàn). Precisa pensar: o que você vai vender? Que tipo de produto? Como você vai fazer a decoração da loja? Tem que pensar nesse 概念 (Gài Niàn).

Para não ficar tão vago, busquei ilustrar com um exemplo.

Eu: Mmmm.. Por exemplo, se eu for montar um restaurante. Eu preciso pensar no 概念 (Gài Niàn). Porque ele que vai definir todo o resto. Então, se o 概念 (Gài Niàn) do restaurante for “chinês vegetariano gourmet”, eu sei que preciso comprar tigelas, hashis (palitinhos) e a decoração pode ter bastante vermelho (porque é chinês), não pode ter nenhum tipo de carne (porque é vegetariano) e os preços serão um pouquinho mais caros (porque é gourmet) . É isso, né?
Ela: Isso.
Eu: Que palavra, em português, você usaria pra resumir tudo isso, mãe?

Ela parou, pensou e eu quase conseguia ouvir as sinapses do cérebro dela sendo formadas.

Ela: Ahhh... acho que é… tipo... “PROJETO”.

Bom, antes de continuar, deixa eu fazer uma pergunta: quando vocês ouvem a palavra “projeto”, quais dessas definições lhes vêm à mente primeiro?

  1. Ideia de fazer ou realizar (algo) no futuro

  2. Plano geral para construção de qualquer obra, com plantas e cálculos

  3. Descrição escrita e detalhada de um empreendimento a ser realizado 

Para mim, são as opções 2 e 3, por algum motivo.
Para minha mãe, não.
Para ela, é a opção 1.

A que transmite a noção de IDEIA. A que existe menos no plano concreto e mais no plano ABSTRATO. Em outras palavras, a que melhor define a palavra “conceito”. Eu nunca havia feito essa associação, entre conceito e projeto. Mais uma vez, meu português, de brasileiro nato, nascido e criado em terras tupiniquins, foi expandido com a ajuda da minha mãe, nascida e criada numa ilhazinha cravada em algum lugar do Extremo Oriente.

Visivelmente impressionado, continuei: 

Eu: Nossa, mãe... Você tem toda razão. É isso mesmo. Projeto. Mas em português, 概念 (Gài Niàn), isso que você chama de projeto, também tem outro nome no dicionário. É uma ideia. Ou, como a gente chama no mundo criativo, conceito.

Juro que imaginei que a reação dela seria algo próximo àquelas que temos diante de um momento de epifania, como se uma luz finalmente tivesse acendido em sua cabeça. Ao invés de um Eureka, tudo o que ela disse foi:

Ela: Mm hmm... Ok. Vamos jantar? ;o)

Sei lá. Talvez os sábios funcionem assim, né? Eles se contentam em compartilhar conhecimento, sabendo que as duas partes envolvidas nesse troca sairão melhores e mais ricas por isso. E para eles, isso basta. Não há necessidade de alarde ou coisa que o valha. Aparentemente, a troca em si já é o “momento eureka” dos sábios.

Bom, além de ser a pessoa mais sábia que eu conheço, minha mãe também tem um talento invejável para idiomas. Além do chinês mandarim, ela fala mais dois dialetos (Minnan e Hakka) fluentemente, passeia no português e está se dedicando, de corpo e alma, a aprender o inglês, durante a pandemia, aos 71 anos de idade.

Sim. Vocês leram certo. Eu disse PASSEIA. Afinal, mesmo com os erros fofos que ela comete todos os dias, que outro imigrante Taiwanês vocês conhecem que sabe usar “Benzadeus” no lugar de “Graças a Deus”?
Que sabe que o correto é dizer “para eu fazer”, e não “para mim fazer”?
E que sabe explicar o conceito de... bem, “conceito”? Em chinês e em português!

Falando nisso, vocês já ouviram falar do conceito de Third Culture Kid (TKC)? São as “crianças da terceira cultura”. Aquelas que crescem com uma primeira cultura em casa (por exemplo, a chinesa), uma segunda cultura fora de casa (por exemplo, a brasileira) e por mera questão de sobrevivência, criam uma terceira, só delas, e que resulta da mescla das duas primeiras. Eu, minhas irmãs, meus primos e outros milhões de filhos de imigrantes somos assim.

Por experiência, posso afirmar que a relação entre um pai ou mãe imigrante com seus” filhos TKC” é, sim, feita de muitas discussões, brigas e desavenças. E não tinha nem como ser diferente, dadas as diferenças de repertório, cultura, hábitos, valores e idioma entre as duas gerações.

Mas, também por experiência, tenho muito orgulho em dizer que quando a poeira baixa e os ânimos se acalmam, o que resta é um respeito quase que inexplicável dos filhos para com seus pais. Uma imensa admiração pela garra, coragem e perseverança que tiveram ao decidirem começar suas vidas longe de tudo e de todos. E uma gratidão indescritível por todos os sacrifícios que fizeram por nós.

Esse é exatamente o sentimento que nutro pela minha mãe. Pela sua história. Pela sua jornada. Pelo ser humano que ela é. Eu tenho duas irmãs, uma mais velha e uma mais nova, e acho que falo em nome de ambas quando digo que, no que diz respeito à nossa mãe, nós três viemos com um sério defeito de fábrica: somos fãs incondicionais dela.

E querem saber? Quanto mais o tempo passa, mais minha mãe prova que para esse defeito, nunca haverá conserto.

Sorte nossa.

The Stack

Vou confessar um segredo para vocês.

Quer dizer, não é bem um segredo. É mais um traço de personalidade que eu não costumo compartilhar, mas que inevitavelmente, todo mundo acaba descobrindo: eu sou a pessoa mais tecnologicamente atrasada e tosca desse mundo. Eu não sei nada de nada sobre esse assunto.

Mas como as pessoas sempre acabam descobrindo esse meu segredo que não é tão segredo assim? Bem, de várias formas. A mais comum é quando me dizem coisas como “me adiciona no Insta”, apenas para ouvir a réplica “mmm.. eu não tenho Insta”. A tréplica costuma ir do sarcástico “cara, em que mundo você vive?” até o incrédulo “como assim, você não tem Insta?!”.

Há outras ocasiões menos corriqueiras, mas não menos constrangedoras. Por exemplo, aquela vez em que um amigo meu me chamou pra almoçar e eu disse que não podia porque tinha de ir ao banco para pagar uma conta. Isso foi em 2012, quando todo mundo já pagava suas contas PELO CELULAR!

 
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Ele falou: “cara, paga pelo Internet Banking!”. Ao me ouvir dizer que não sabia usar, ele muito gentilmente se ofereceu para me ensinar a mexer. Daí, entramos no site, inseri o número da conta, agência e quando chegou na hora da senha, ele disse: “qual a sua senha?”. Falei: “sei lá, não faço a menor ideia”. Inabalável, ele não largou o osso e disse: “liga no banco e pergunta. A gente não sai daqui até você aprender a mexer nisso! E bota no viva voz que eu quero ouvir!”.

Liguei no banco, e a URA atendeu. Depois de apertar um monte de opções, finalmente chegamos na mensagem: “Insira sua senha”. Aparentemente era alguma senha específica para atendimentos por telefone, diferente daquela usada para Internet. Obviamente que eu não fazia a menor ideia que senha era essa.

Não preciso dizer que acabei almoçando sozinho aquele dia, né? ;o)

Bom, dito isso, imagino que não será surpresa para vocês quando eu disser que, até agosto do ano passado, em pleno 2020, eu apenas tinha ouvido falar de Netflix. Eu jamais sequer tinha acessado o site, quanto mais ter assistido a algum conteúdo da plataforma.

Eu sabia apenas que se tratava de um serviço de streaming, mas a verdade é que eu nem entendia direito o conceito de serviço de streaming. Para mim, assistir a vídeos era algo que se fazia no Youtube. Simples assim. E se você pode assistir a um monte de coisas de graça no Youtube, para que pagar por um serviço privado para poder consumir conteúdo?

Bom, essa dúvida foi sanada quando, tal qual esse meu amigo se ofereceu (generosamente) a me ajudar com o Internet Banking, minha irmã generosamente se ofereceu para me tirar da Idade da Pedra, me apresentando ao maravilhoso mundo da Netflix e compartilhando a conta dela comigo.

 
 

Hoje, apenas alguns meses depois, entendo porque tanta gente gosta de Netflix.

Por tanta gente, quero dizer mais de 200 milhões de assinantes ao redor do mundo. Pois é. Em janeiro de 2021, a Netflix cruzou a barreira de 200 milhões de assinantes. Isso é praticamente toda a população do Brasil. E estamos falando apenas dos assinantes, sem contar todos aqueles com quem esses assinantes compartilham a conta.

Todo esse mundaréu de gente está espalhado por mais de 190 países, do Brasil ao Japão, dos Emirados Árabes à Austrália. Agora vem a pergunta: quando você tem uma empresa que precisa se comunicar com tanta gente, tantas culturas, em tantos países e em tantos idiomas, como você mantém uma uniformidade, uma coerência na comunicação?

Bom, é para isso que existem os chamados brand books, ou branding guidelines. Como o próprio nome diz, um brand book é – grossíssimo modo –, o “manual” da marca. Ele aborda tudo que se refere à forma com que a empresa deve se comunicar com seu público: desde tom de voz e tipografia até que tipo de foto e quais cores devem ser usados.

Toda empresa com abrangência global tem um desses manuais. A Coca-Cola tem. O Google tem. A Unilever tem. A Uber tem. Todas tem. E não é diferente com a Netflix.

 
 

O que é, sim, diferente no caso da Netflix, é que o guide deles tem uma abordagem conceitual.

Quem revela isso é Ryan Moore, diretor de criação da agência nova-iorquina Gretel, que em 2015 desenvolveu o branding guideline atual da Netflix. Segundo suas próprias palavras, em entrevista para a revista americana Fast Company, ele  diz:

“O grande desafio era unificar tudo, (...) a marca em si estava um pouco fraturada, porque a Netflix estava trabalhando com parceiros e agências espalhados por todo o mundo. (...) O que a Netflix precisava era de uma ideia que costurasse tudo – uma abordagem conceitual –, (...) um sistema visual que todas essas agências pudessem usar e adaptar para qualquer formato que precisassem.”

O conceito usado para a criação deste guideline foi o de “seleção e curadoria”.
E por quê? (com conceitos, tudo sempre tem um porquê, lembra? ;o))

Simples. Para mostrar que a Netflix é, sim, um catálogo de filmes. Mas sobretudo, é alguém que faz a curadoria do conteúdo que a gente assiste, selecionando aquilo que é mais legal, relevante, divertido e customizado para cada um de nós.

Brilhante, né?

Mais brilhante ainda foi como a agência transformou esse conceito em branding guideline. Mas antes de entrar em mais detalhes neste processo, gostaria de antes focar nas palavras de Ryan Moore. Principalmente, as que deixei em negrito.

Ele diz que o grande desafio era unificar toda a comunicação. E por que isso era um desafio? Acho que para a resposta ficar mais clara, um pouco de contexto ajuda: em 2015, quando a Gretel foi contratada para desenvolver esse brand book, a Netflix estava presente em 65 países. Acontece que ela já tinha um plano traçado e pronto para ser posto em prática já em janeiro de 2016: expandir suas operações para 130 países.

O desafio a que Moore se refere era exatamente esse: como dobrar a presença global da Netflix de 65 para 130 países, sem comprometer a coerência textual e visual da empresa em todos esses diferentes mercados? 

Em outras palavras, como unificar toda a comunicação?

A resposta veio na forma de uma ideia. De um conceito.

Para nós, criativos, isso não é exatamente uma surpresa. Pelo menos, não deveria ser. Afinal, uma das qualidades mais valiosas de um conceito é seu poder de equalizar a compreensão. Usamos conceitos para ajudar as pessoas:

1)     a entenderem o mundo ao seu redor e
2)    a entenderem uma às outras.    

Acho que ficou um pouquinho confuso, né? Bom, com um exemplo fica bem mais fácil de entender.

Essa minha irmã que me apresentou ao maravilhoso mundo da Netflix é, ela mesma, uma fonte inesgotável de histórias. A mulher praticamente nasceu com rodas nos pés: viaja desde cedo, e possui uma cultura invejável. Em uma de suas andanças pelo mundo, ela foi parar em Madagascar. E voltou de lá falando sobre quão majestosos são os baobás.

Eu assim: bao- quê? o que é isso?

Fiquei tentando adivinhar.

Seriam membros de alguma tribo, como os Himbas da Namíbia e os Konsos da Etiópia? 
Ou seria algum animal endêmico à maior ilha do continente africano, como as fossas e os lêmures- de-cauda-anelada?

 
 

Afinal, do que minha irmã estava falando? Que raios é um baobá?

Ele respondeu: uma árvore.

E de repente, o mar se abriu. Tudo fez sentido. Agora sim, estávamos na mesma página.

Ao usar o conceito de árvore, de uma hora para a outra, passamos a nos entender. Eu passei a compreender o que ela estava falando porque passei a usar o mesmo conceito que ela: “ah, ok, estamos falando de uma árvore”. A partir daquele momento, estávamos funcionando na mesma frequência. Nossa compreensão se equalizou.

 
 

Neste caso, estávamos falando particularmente de um baobá. E eu uso a palavra “particularmente” de propósito.

Se vocês estão lendo este post, passaram pela introdução lá em cima e sabem que o nome deste blog é uma pequena homenagem a Platão, o cara da caverna.

Pois é. Além do mito da caverna, ele foi o cara que criou uma das teorias mais lindas e dramáticas da História do pensamento ocidental: a “Teoria das Formas”. E nessa teoria, ele diz que o universo é composto por “formas” e “particulares”.

(Peraí! Não vai embora ainda, não! Juro que o momento filosofia nerd é rápido. São só os dois próximos parágrafos ;o))

 
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Platão.

Aluno de Sócrates.
Professor de Aristóteles.
O cara da caverna.
E da Teoria das Formas.

 

A Teoria das Formas é bem simples (talvez por isso, seja tão genial). Segundo ela:

  1. Existe a “forma da árvore” (que é o “conceito de árvore”, a ideia que temos de uma árvore).

  2. E existem as “árvores particulares” (por isso usei a palavra particularmente): o baobá, a sequóia, o pinheiro, o eucalipto, etc.

Você pode até não saber o que é uma sequóia. Mas se eu disser que é uma árvore, você entende, né?

Por exemplo, imagine que estamos tendo uma conversa despretensiosa, comendo uma pizza. Aí, eu digo palavra” árvore”.
Eu não sei em qual árvore, particularmente, você está pensando. Mas sei que a forma dela é provavelmente composta por um tronco vertical, uns galhos, e uma copa.

É isso. Simples, não?
Existem as formas. E existem os particulares. (Pronto, acabou! Não falei que ia ser rápido? ;o))

Os conceitos são as formas.
E a maneira que a agência Gretel transformou o conceito de seleção e curadoria foi super particular: algo que eles chamaram de The Stack.  

A ideia expressa pelo The Stack é a seguinte: imagine três cartõezinhos organizados como no video abaixo.

 
 

Agora imagine que cada um desses três cartões represente um filme, um show, uma série ou um documentário da Netflix.

Finalmente, e essa é para vocês que não faltaram na aula de análise combinatória na escola, faça as contas: tendo em vista todo o catálogo de atrações de Netflix, quantas combinações dá para fazer brincando com esses três cartõezinhos?

Eu não sei a resposta, mas sei que deve ser algo perto de infinito. E é exatamente o que a Gretel quis passar com o The Stack: a ideia de que a Netflix é um catálogo vivo e infinito de atrações, que está sempre em expansão. Ou seja, sempre haverá novidades ou algo para ver.

Outra coisa: a Gretel sabia que seria simplesmente impossível supervisionar todos os criativos, designers e diretores de arte que trabalhariam na comunicação da Netflix ao redor do mundo. Por isso, ao invés de estabelecer um branding guideline com um milhão de regras, e cheio de detalhes, eles criaram um guideline que possuía, basicamente, três diretrizes.

As diretrizes referiam-se à função de cada cartão. Obrigatoriamente,

  1. um cartão tinha de ser reservado para mostrar uma foto da atração,

  2. um tinha de mostrar uma das cores básicas da Netflix (preto, branco ou vermelho) e

  3. um tinha de ser exclusivamente usado para textos.

 
 

Era isso. Nada mais. Quem decidia a ordem dos cartões, a “largura” dos cartões, a animação, era o designer. Ponto final. Mais simples, impossível.

Tal simplicidade foi rapidamente recompensada.

Assim que o novo brand book foi revelado, críticas e análises positivas vieram de todos os lados. O site Logo Design Love o descreveu como “uma das identidades mais fortes e completas dos últimos anos”. Já a publicação Fast Company o qualificou como “uma linguagem de branding universal, que funciona tanto para outdoors gigantes como para minúsculos aplicativos para iPhones”.

A prova cabal do sucesso do The Stack veio em 2018, quando a Netflix foi votada a marca mais simples do mundo, segundo o relatório “Simplicity Index”, superando marcas como Google, McDonald’s e Spotify. O ranking usa critérios como “facilidade de usar o serviço”, “percepção do consumidor com relação à empresa” e, acima de tudo, clareza da identidade de marca.

O “Simplicity Index” foi criado e é elaborado pela agência de branding Siegel+Gale, que além de cuidar de marcas como a 3M (o grupo multinacional de tecnologia diversificada) e a HP (empresa de tecnologia), também criou o logo da NBA (a liga de basquete americana).

Falando em logo, o da Netflix, além de super simples, também é super conceitual: trata-se de uma referência ao chamado Cinemascope, que nada mais é que o processo que possibilitou a exibição de filmes em formato widescreen. A escolha das cores vermelha e preta também tem um porquê: segundo a própria Netflix, essas cores foram escolhidas para criar a sensação premium de se estar no cinema.

 
 

Eu amo isso em conceitos: o fato de que que tudo sempre tem uma razão. Mas existe outro motivo pelo qual eu amo e admiro tanto o mundo conceitual. Conceitos são unificadores. Atemporais. Universais. Uma árvore é uma árvore em qualquer lugar do mundo. Sempre foi e sempre será.

Neste sentido, é o contrário da tecnologia, que muda o tempo todo, em todo lugar. E que por isso, pelo menos a meu ver, tende a dividir mais do que unificar.

Querem um exemplo? É só pegarmos o conceito de rede social.

Hoje, aparentemente, “velhos” usam Facebook, “jovens” usam Instagram.
Ontem, era Snapchat; hoje, é Tik Tok. 
No Brasil, é WhatsApp. Na China, é WeChat.

A tecnologia muda.
O conceito, não: ainda estamos falando de redes sociais.

Ele é o mesmo, tanto para os “velhos” quanto para os “jovens” (unificador).
Ele é o mesmo; ontem e hoje (atemporal).
Ele é o mesmo, seja no Brasil ou na China (universal).

Por isso, sempre foi mais fácil para mim entender e navegar no mundo conceitual do que acompanhar o aceleradíssimo e inconstante universo da tecnologia. Mas isso não significa que eu não enxergue os benefícios da tecnologia. Longe disso. Eu super reconheço que ela não é de todo ruim. Sem dúvida, ela tem suas vantagens.

Por exemplo: ter aprendido a mexer no Internet Banking, por mais difícil que tenha sido (para alguém tosco e inábil como eu), trouxe, sim, uma enorme vantagem. E nem é o fato de que agora eu não perco mais tempo em filas de banco.

É porque sobra mais tempo para assistir Netflix. ;o)

Com vocês, o brilhante The Stack.

 
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