Pensamento Conceitual
/Em abril de 2018, reencontrei uma amiga das antigas. Nós nos cruzamos sem querer na frente de um café, e como é de praxe nessas situações, emendamos aquela conversa do tipo “e aí, o que você tem feito?”, “como está a família?”, etc.
Do meu lado, contei que estava me preparando para encarar um vôo solo e me dedicar inteiramente ao trabalho de conceituação. Quando chegou a vez dela de me contar as novidades, ela me disse que estava aplicando para uma vaga em um mestrado ou um doutorado, algo assim. Não me lembro exatamente.
Mas eu me lembro perfeitamente sobre o que ela pretendia falar na tese dela: tinha a ver com Inteligência Artificial, sobretudo do ponto de vista do autor, inventor e futurista americano Ray Kurzweil, que escreveu o livro “How to Create a Mind: The Secret of Human Thought Revealed”.
Esta foi a obra que minha amiga decidiu usar como base para sua tese. Neste livro, Kurzweil aborda conceitos como singularidade, fala sobre algo chamado neocortex (aparentemente, é algo que faz parte do nosso cérebro) e discorre sobre as origens da consciência.
Não entendeu nada? Bom, então, bem-vindo ao clube. Eu também não. ;o)
Mas foi a partir dessa conversa que passei a prestar mais atenção ao meu redor, para então perceber como Inteligência Artificial se tornou um assunto corriqueiro e quase onipresente nas rodas de conversa. Agora, tudo é A.I., tudo é machine learning. Honestamente, eu não curto muito falar sobre esse assunto. Não porque não me interesse. Pelo contrário. Eu acho fascinante.
Mas é porque me assusta. De verdade. E não tenho nem vergonha de admitir. Eu não sei apontar uma razão específica, mas acho que é porque a galera da minha geração cresceu assistindo a filmes que abordavam a tal da “Rebelião das Máquinas” de um jeito mega sombrio e super desesperançoso.
Eu lembro como se fosse ontem de quando assisti ao primeiro Blade Runner (1982, de Ridley Scott), ao primeiro Exterminador do Futuro (1984, de James Cameron), e bem depois, ao primeiro The Matrix (1999, dos irmãos – atualmente irmãs – Wachowsky).
Se vocês assistiram a esses filmes, sabem do que eu estou falando: ninguém merece viver num mundo regido por máquinas, né? Pelo menos na visão cinematográfica de Hollywood, esses mundos são sempre distópicos, estéreis e insuportavelmente desoladores.
Então, acho que é por isso: esses três filmes consolidaram em mim a convicção inabalável de que criar uma máquina mais inteligente que um humano não é exatamente a melhor das ideias. ;o)
Bom, se o meu medo está pautado no que eu vi em filmes de ficção científica, existe um outro medo que quase todo mundo tem, muito mais real e palpável, e que de ficção não tem nada: o do desemprego. Não é supresa para ninguém que as máquinas decididamente substituirão as pessoas nas mais diversas atividades profissionais. Esse dia não vai chegar. Ele já chegou: já existem URAS operadas por inteligência artificial substituindo pessoas que trabalhavam em Call Centers.
Mas felizmente, nem tudo está perdido. Pelo menos é o que diz o Taiwanês Lee Kai Fu, considerado por muitos o papa da Inteligência Artificial. Segundo ele mesmo diz (e já vimos neste post), há certas coisas que as máquinas jamais serão capazes de fazer, independente de quão inteligentes sejam. E uma dessas coisas é pensar conceitualmente (você já devia estar se perguntando o que todo esse papo tinha a ver com conceitos, né?).
Foi aí que me ocorreu: será que as pessoas sabem o que significa pensar conceitualmente? Como se define pensamento conceitual? Bom, eu tenho a minha própria definição, que possui base totalmente subjetiva e empírica. E por isso, tem grandes chances de não ser a definição correta. Pode até ser UMA definição correta. Mas talvez, não A correta.
Por isso, fui pesquisar na Internet. Buscar outras fontes. Surpreendentemente, 100% das definições que encontrei eram respostas a perguntas como “como o pensamento conceitual ajudará os líderes de amanhã?”, ou “como pensar conceitualmente ajuda a desenvolver a sua carreira?” Coisas assim. O que prova que as pessoas estão, de fato, querendo desenvolver este talento para conseguirem sobreviver à onda do A.I, que além de inevitável, parece ser irreversível.
De todas as definições que encontrei, acho que vale a pena dividir cinco. São elas:
“O pensamento conceitual é a prática de se conectar idéias abstratas e díspares para aprofundar a compreensão, criar novas idéias e refletir sobre decisões anteriores para, assim, melhorar os resultados futuros.”
“Pensamento conceitual é enxergar o “big picture”; é uma propensão para pensar em horizontes de longo prazo.”
“Pensadores conceituais têm uma compreensão astuta de por que algo está sendo feito.”
“O pensamento conceitual consiste na capacidade de encontrar conexões ou padrões entre ideias abstratas e, em seguida, juntá-los para formar uma imagem completa.”
“Ter pensamento conceitual significa que, quando um novo projeto cai no seu colo, você não arregaça as mangas e sai fazendo. Em outras palavras, você tem um forte desejo de entender o “porquê” de cada projeto.”
No que diz respeito ao pensamento conceitual, para mim, todas essas definições trazem um quê de verdade. E sou o primeiro a dar a mão à palmatória e reconhecer que me vi em todas elas.
Na incapacidade de enxergar apenas “um pedaço” da situação, e na tendência a sempre enxergar o todo.
No movimento quase involuntário de sempre querer me aprofundar nos assuntos, buscando mais conhecimento.
Na facilidade (que eu juro que não sei de onde vem) em criar conexões e fazer associações entre ideias, pensamentos e conceitos que, a princípio, não têm absolutamente nada a ver um com o outro.
Na relação de causa e efeito que existe entre refletir sobre decisões anteriores como forma de melhorar resultados futuros.
E sobretudo, na desesperadora necessidade de entender o porquê de tudo. Sério: de T-U-D-O (o que, admito, torna a minha vida - e a dos meus amigos e familiares -, MUITO mais difícil. Sorry, pessoal!… ;o))
Todos esses pontos, em menor ou maior grau, aparecem quando estou pensando conceitualmente. Mas se fosse para escolher qual deles é o mais prevalente, eu diria que o ponto número 5 é o que mais fala comigo. É também o que melhor reflete a minha própria definição de pensamento conceitual, que eu – humildemente – gostaria de dividir com vocês abaixo.
Para mim, pensar conceitualmente nada mais é do que pensar no porquê das coisas.
Se você acompanha este blog desde o começo, primeiro… queria dizer muitíssimo obrigado! Segundo, já deve saber que com conceitos, tudo tem um porquê. Já repetimos isso tantas vezes aqui que essa frase já virou quase que um mantra. Porque é verdade. Querem ver um exemplo?
Ontem, conversando com uma amiga super querida por WhatsApp, ela me contou que comprou uma camiseta com a estampa da cantora americana Nina Simone. Essa daí que estou colocando abaixo.
Ao me mandar a foto da camiseta, tivemos a seguinte conversa sobre como ela (essa minha amiga) estava começando a pensar e a enxergar as coisas conceitualmente:
Ela: Bati o olho nessa camiseta e pensei no conceito...hahaha
Ela: essa é Nina Simone
Ela: achei bem criativa, o “Be Free” no cabelo dela
Ela: olha o que vc esta fazendo comigo.....hahaha
Eu: Nao eh???
Eu: MARAVILHOSO!!!!!!!
Eu: Nao eh maravilhoso quando a gente comeca a enxergar essas coisas?
Ela: é bem legal, nunca tinha parado pra ficar pensando nisso
Eu: Nao eh legal?
Eu: Eu amo
Eu: Acho incrível
Eu: Que a liberdade
Ela: eu comprei essa camiseta porque achei criativa...hahaha
Eu: Esteja no cabelo da Nina Simone
Eu: Algo que é tão poderoso: o cabelo dos negros.
Eu: Nossa
Eu: Achei demais
Eu: Cheio de significado
Ela: exatamente isso, ela foi uma ativista pelos direitos dos negros
Ela: então, tem muito significado
Uma conversa completamente trivial... mas, para mim, hiper conceitual. Afinal, estávamos discutindo os porquês da estampa. O porquê do designer escolher passar a mensagem justamente dessa forma que vocês estão vendo na imagem. Vamos combinar: havia infinitas outras maneiras de se passar a ideia do “grito pela liberdade”. Mas o artista que criou a estampa escolheu passar dessa maneira.
Por quê? (1)
O contexto certamente tem a ver com isso. O fato de Nina Simone ser ativista pelos direitos dos negros. O fato de ela mesma ter sido vítima de preconceito racial. Essa maneira de traduzir todas essas ideias em uma única imagem traz nova profundidade para a estampa. Existe uma conexão entre a imagem de um penteado afro e a força, talento, resiliência, criatividade e individualidade da cantora Nina Simone.
Podemos ir além nos porquês. Por exemplo, de tantos penteados que a cantora desfilou ao longo de sua carreira, por que (2) escolher o penteado afro?
Talvez seja uma referência a um show que ela fez na Holanda, em 1965, em que ela abre a canção Four Women (do álbum Wild is the Wind) dizendo:
“My skin is black, my arms are long.
My hair is woolly, my back is strong.”
E continua, enquanto passa a mão gentilmente em seu próprio Afro:
“And one of the women’s hair,” ela diz, “is like mine.”
Que coisa mais linda, não?
Eu nem sei se essas minhas especulações estão nos levando às respostas certas. Mas sei que quanto mais eu pergunto “por quê”, mais eu me aprofundo no assunto, mais contexto eu ganho, mais conhecimento eu adquiro, mais conexões consigo fazer e, se eu eventualmente encontrar respostas para esses todos esses “por quês”, mais preparado e equipado estarei para dá-las.
Falamos do penteado Afro de Nina Simone. Perceberam como as cores da estampa estão em “negativo”, de forma que os detalhes do seu rosto são delineados na parte “vazada” da imagem, dando ainda mais destaque para o preto de seu cabelo? Por que (3) será?
Bom, quem sabe o artista que desenhou essa estampa estivesse ouvindo à canção “Black Is The Color Of My True Love’s Hair” do álbum Nina Simone at Town Hall, de 1959, durante o processo criativo. Ou talvez ele tenha feito isso para ressaltar ainda mais as palavras que compõem a mensagem, o call-to-action: “Be free”
Aliás, falando nisso, por que (4) justamente essas palavras: “be free”? Por que não “Be strong”? Por que não “Be brave”?
Meu palpite é porque se trata de uma referência à canção “I Wish I Knew How It Would Feel To Be Free”, do álbum Silk & Soul, de 1967. Porque essa canção foi usada como hino do Movimento dos Direitos Civis nos EUA dos anos 60. Não à toa, o box que apresenta a carreira completa de Nina Simone (composto por 3 CDs e 1 DVD) chama-se “To Be Free: The Nina Simone Story”. E porque é uma homenagem à definição que a artista deu para liberdade, em uma entrevista de 1968: “I’ll tell you what freedom is to me: freedom is NO FEAR!”.
Lee Kai Fu afirmou neste post que a Inteligência Artificial nunca será capaz de fazer dois tipos de trabalho:
1) aquele que requer criatividade, estratégia e pensamento conceitual.
2) aquele que requer compaixão, empatia e conexão humana.
Com isso em mente, agora, vamos ao maior dos porquês: por que (5) Nina Simone? De tantos personagens, de tantos ícones, por que criar uma estampa com o rosto dela?
Eis algumas das minhas hipóteses do porquê por trás da escolha de Nina Simone.
Nina Simone, a artista, respirava criatividade. Acho que não precisamos nem entrar neste quesito, né?
Nina Simone, a ativista, usou os palcos para dar voz ao movimento dos direitos civis. Na real, se isso não é brilhante como estratégia, eu não sei o que é.
Nina Simone, o ser humano, foi talhada para ser uma figura questionadora desde criança. De Muriel Mazzanovich (sua professora de piano) a Lorraine Hansberry (que a apresentou às ideias de Marx e Lênin) a Betty Shabazz (esposa de Malcolm X), sua trajetória foi pontuada por pessoas que a estimularam a pensar nos porquês que existiam por trás do Zeitgeist que pulsava na sociedade da época.
Em termos de compaixão, empatia e conexão humana, sugiro que vocês assistam ao documentário “What Happened, Miss Simone?”, de 2015. Em um determinado trecho, somos convidados a participar de um show que ela fez, em Paris, quando passava pelo pior momento de sua carreira (que coincidiu com o mesmo momento em que sua saúde começou a sofrer).
Tocando em um café minúsculo, para um público menor ainda, sendo paga míseros USD 300 por noite (para alguém de seu talento e genialidade), ela começa o show perguntando, em francês (uma clara demonstração de empatia): “Est-ce que vous parlez anglais?” (vocês falam inglês?).
Diante da resposta negativa, ela começa o show cantarolando: “Vous êtes seul, mais je désire être avec vous” (Você está sozinho, mas eu desejo estar com você). Pelo menos aos meus olhos, alguém que mesmo em seu pior momento – pessoal e profissional – faz questão de reconhecer e diminuir a solidão alheia é alguém que transborda compaixão e desejo por conexão humana.
Por tudo isso, imagino que o artista tenha escolhido a cantora americana para aparecer na camiseta. E a verdade é que a gente podia ter visto a imagem e ter apenas pensado: “uau, que estampa bacana”. Ou ter olhado o desenho e ter simplesmente pensado “que estampa linda”. E ainda assim, estaria tudo certo. A estampa, afinal, é linda e super bacana.
Mas ao pensar conceitualmente sobre ela, ao pensar nos porquês que levaram à criação dessa estampa, fomos além.
Inevitavelmente nos aprofundamos no assunto, descobrindo mais sobre a carreira de Nina Simone, sobre a vida dela, encontrando algumas respostas aqui e ali, mas sobretudo, chegando a uma conclusão definitiva, irrefutável e inatacável: a de que nenhuma máquina, não importa o quão inteligente ela seja, será capaz de criar o que Nina Simone criou. De fazer o que ela fez. De nos emocionar como ela ainda nos emociona. Nunca. Jamais.
Quem diz isso não sou eu. É Lee Kai Fu.
Eu super concordo. E vou além. Para mim, não há (nem nunca haverá) máquina e nem tampouco ser humano que seja capaz de se igualar à artista ou reproduzir o legado de Nina Simone. Aos meus olhos, isso está mais do que óbvio! Mas eu não sou o dono da verdade, né? Alguns de vocês podem não concordar comigo.
E se este for o caso, então só posso pedir para que repensem sobre o assunto.
De preferência, conceitualmente. ;o)