Gài Niàn Huà (概念化)
/Minha mãe é imigrante Taiwanesa.
Quando chegou ao Brasil, no comecinho dos anos 70, ela já tinha mais de 20 anos. Ou seja, ela foi alfabetizada, educada e criada em chinês. Hoje, quase 50 anos depois, domina a língua portuguesa (que, para quem não sabe, é uma das mais difíceis do mundo) de uma forma que não só me enche de orgulho, mas me inspira, para dizer o mínimo.
Cheio de sotaque, o português dela é daqueles que, por motivos estritamente fonéticos, confunde “cadeira” com “carteira”, “pneu” com “pernil”, “Seattle” (na pronúncia correta da cidade americana) com “Cielo” (a maquininha de cartões). Erros fofos, basicamente. ;o)
E um desses erros aconteceu quando, em uma conversa que tive com ela, faz uns 2 anos, eu disse “conceito”.
Ela entendeu “conserto”.
Motivo pelo qual, durante muito tempo, ela teve dificuldade em entender o que eu estava fazendo profissionalmente. Na cabeça dela, não fazia o menor sentido. Justo eu, que não sei trocar uma lâmpada e nem pregar um quadro, montando uma empresa de conserto?
Finalmente, expliquei que eu não estava montando uma “empresa de consertos”, mas sim, uma “agência de conceitos”. E como era de se esperar, a ficha não caiu imediatamente. E não foi nem por conta do português.
É porque, para quem nunca fez parte de um processo criativo, seja ele qual for (da criação de uma campanha em uma agência de publicidade à criação de uma coreografia em um estúdio de dança) realmente é difícil de entender – e de explicar – o que é o conceito e qual o seu papel no processo de criação.
Naturalmente, a primeira coisa que fiz foi ir no Google Tradutor e digitar “conceituar”.
Pedi a tradução em chinês tradicional, que é aquele usado em Taiwan. A tradução em chinês mandarim foi 概念化 (Gài Niàn Huà). Para ajudar vocês a entenderem essa palavra mais ou menos (bem mais ou menos, hein?) da forma que minha mãe deve ter entendido, vale uma breve explicação.
A palavra 概念化 (Gài Niàn Huà) é formada por 3 ideogramas.
O primeiro ideograma, 概 (Gài), é o mesmo da palavra 大概 (Dà Gài), que quer dizer “provavelmente”, no sentido de não ter 100% certeza, de apenas “fazer/ter uma ideia”.
O segundo ideograma, 念 (Niàn), é o mesmo do 想念 (Xiǎng Niàn), que significa “sentir saudades”, no sentido de “estar pensando em algo ou alguém”.
Finalmente, o terceiro ideograma, 化 (Huà), significa transformar.
Conceituar em chinês mandarim, segundo o Google Tradutor, é isso.
Tem a ver com ter uma ideia, que ainda não está totalmente definida.
Tem a ver com pensar em algo, com ter algo em mente.
E tem a ver com essa ideia, na qual estamos pensando, ir se transformando.
É tudo isso, junto e misturado, acontecendo simultaneamente. (Não é à toa que dizem que chinês é o idioma mais difícil do mundo.)
Engraçado que tudo começou comigo tentando explicar para minha mãe o que significava “conceituar”. E de repente, eu me peguei buscando a ajuda dela, pedindo para ela me explicar, nas palavras dela, o que havia entendido por 概念化 (Gài Niàn Huà).
Misturando português e chinês, eis o que ela me disse:
Ela: É que nem quando você vai montar uma loja. Precisa ter 概念 (Gài Niàn). Precisa pensar: o que você vai vender? Que tipo de produto? Como você vai fazer a decoração da loja? Tem que pensar nesse 概念 (Gài Niàn).
Para não ficar tão vago, busquei ilustrar com um exemplo.
Eu: Mmmm.. Por exemplo, se eu for montar um restaurante. Eu preciso pensar no 概念 (Gài Niàn). Porque ele que vai definir todo o resto. Então, se o 概念 (Gài Niàn) do restaurante for “chinês vegetariano gourmet”, eu sei que preciso comprar tigelas, hashis (palitinhos) e a decoração pode ter bastante vermelho (porque é chinês), não pode ter nenhum tipo de carne (porque é vegetariano) e os preços serão um pouquinho mais caros (porque é gourmet) . É isso, né?
Ela: Isso.
Eu: Que palavra, em português, você usaria pra resumir tudo isso, mãe?
Ela parou, pensou e eu quase conseguia ouvir as sinapses do cérebro dela sendo formadas.
Ela: Ahhh... acho que é… tipo... “PROJETO”.
Bom, antes de continuar, deixa eu fazer uma pergunta: quando vocês ouvem a palavra “projeto”, quais dessas definições lhes vêm à mente primeiro?
Ideia de fazer ou realizar (algo) no futuro
Plano geral para construção de qualquer obra, com plantas e cálculos
Descrição escrita e detalhada de um empreendimento a ser realizado
Para mim, são as opções 2 e 3, por algum motivo.
Para minha mãe, não.
Para ela, é a opção 1.
A que transmite a noção de IDEIA. A que existe menos no plano concreto e mais no plano ABSTRATO. Em outras palavras, a que melhor define a palavra “conceito”. Eu nunca havia feito essa associação, entre conceito e projeto. Mais uma vez, meu português, de brasileiro nato, nascido e criado em terras tupiniquins, foi expandido com a ajuda da minha mãe, nascida e criada numa ilhazinha cravada em algum lugar do Extremo Oriente.
Visivelmente impressionado, continuei:
Eu: Nossa, mãe... Você tem toda razão. É isso mesmo. Projeto. Mas em português, 概念 (Gài Niàn), isso que você chama de projeto, também tem outro nome no dicionário. É uma ideia. Ou, como a gente chama no mundo criativo, conceito.
Juro que imaginei que a reação dela seria algo próximo àquelas que temos diante de um momento de epifania, como se uma luz finalmente tivesse acendido em sua cabeça. Ao invés de um Eureka, tudo o que ela disse foi:
Ela: Mm hmm... Ok. Vamos jantar? ;o)
Sei lá. Talvez os sábios funcionem assim, né? Eles se contentam em compartilhar conhecimento, sabendo que as duas partes envolvidas nesse troca sairão melhores e mais ricas por isso. E para eles, isso basta. Não há necessidade de alarde ou coisa que o valha. Aparentemente, a troca em si já é o “momento eureka” dos sábios.
Bom, além de ser a pessoa mais sábia que eu conheço, minha mãe também tem um talento invejável para idiomas. Além do chinês mandarim, ela fala mais dois dialetos (Minnan e Hakka) fluentemente, passeia no português e está se dedicando, de corpo e alma, a aprender o inglês, durante a pandemia, aos 71 anos de idade.
Sim. Vocês leram certo. Eu disse PASSEIA. Afinal, mesmo com os erros fofos que ela comete todos os dias, que outro imigrante Taiwanês vocês conhecem que sabe usar “Benzadeus” no lugar de “Graças a Deus”?
Que sabe que o correto é dizer “para eu fazer”, e não “para mim fazer”?
E que sabe explicar o conceito de... bem, “conceito”? Em chinês e em português!
Falando nisso, vocês já ouviram falar do conceito de Third Culture Kid (TKC)? São as “crianças da terceira cultura”. Aquelas que crescem com uma primeira cultura em casa (por exemplo, a chinesa), uma segunda cultura fora de casa (por exemplo, a brasileira) e por mera questão de sobrevivência, criam uma terceira, só delas, e que resulta da mescla das duas primeiras. Eu, minhas irmãs, meus primos e outros milhões de filhos de imigrantes somos assim.
Por experiência, posso afirmar que a relação entre um pai ou mãe imigrante com seus” filhos TKC” é, sim, feita de muitas discussões, brigas e desavenças. E não tinha nem como ser diferente, dadas as diferenças de repertório, cultura, hábitos, valores e idioma entre as duas gerações.
Mas, também por experiência, tenho muito orgulho em dizer que quando a poeira baixa e os ânimos se acalmam, o que resta é um respeito quase que inexplicável dos filhos para com seus pais. Uma imensa admiração pela garra, coragem e perseverança que tiveram ao decidirem começar suas vidas longe de tudo e de todos. E uma gratidão indescritível por todos os sacrifícios que fizeram por nós.
Esse é exatamente o sentimento que nutro pela minha mãe. Pela sua história. Pela sua jornada. Pelo ser humano que ela é. Eu tenho duas irmãs, uma mais velha e uma mais nova, e acho que falo em nome de ambas quando digo que, no que diz respeito à nossa mãe, nós três viemos com um sério defeito de fábrica: somos fãs incondicionais dela.
E querem saber? Quanto mais o tempo passa, mais minha mãe prova que para esse defeito, nunca haverá conserto.
Sorte nossa.



