The Stack
/Vou confessar um segredo para vocês.
Quer dizer, não é bem um segredo. É mais um traço de personalidade que eu não costumo compartilhar, mas que inevitavelmente, todo mundo acaba descobrindo: eu sou a pessoa mais tecnologicamente atrasada e tosca desse mundo. Eu não sei nada de nada sobre esse assunto.
Mas como as pessoas sempre acabam descobrindo esse meu segredo que não é tão segredo assim? Bem, de várias formas. A mais comum é quando me dizem coisas como “me adiciona no Insta”, apenas para ouvir a réplica “mmm.. eu não tenho Insta”. A tréplica costuma ir do sarcástico “cara, em que mundo você vive?” até o incrédulo “como assim, você não tem Insta?!”.
Há outras ocasiões menos corriqueiras, mas não menos constrangedoras. Por exemplo, aquela vez em que um amigo meu me chamou pra almoçar e eu disse que não podia porque tinha de ir ao banco para pagar uma conta. Isso foi em 2012, quando todo mundo já pagava suas contas PELO CELULAR!
Ele falou: “cara, paga pelo Internet Banking!”. Ao me ouvir dizer que não sabia usar, ele muito gentilmente se ofereceu para me ensinar a mexer. Daí, entramos no site, inseri o número da conta, agência e quando chegou na hora da senha, ele disse: “qual a sua senha?”. Falei: “sei lá, não faço a menor ideia”. Inabalável, ele não largou o osso e disse: “liga no banco e pergunta. A gente não sai daqui até você aprender a mexer nisso! E bota no viva voz que eu quero ouvir!”.
Liguei no banco, e a URA atendeu. Depois de apertar um monte de opções, finalmente chegamos na mensagem: “Insira sua senha”. Aparentemente era alguma senha específica para atendimentos por telefone, diferente daquela usada para Internet. Obviamente que eu não fazia a menor ideia que senha era essa.
Não preciso dizer que acabei almoçando sozinho aquele dia, né? ;o)
Bom, dito isso, imagino que não será surpresa para vocês quando eu disser que, até agosto do ano passado, em pleno 2020, eu apenas tinha ouvido falar de Netflix. Eu jamais sequer tinha acessado o site, quanto mais ter assistido a algum conteúdo da plataforma.
Eu sabia apenas que se tratava de um serviço de streaming, mas a verdade é que eu nem entendia direito o conceito de serviço de streaming. Para mim, assistir a vídeos era algo que se fazia no Youtube. Simples assim. E se você pode assistir a um monte de coisas de graça no Youtube, para que pagar por um serviço privado para poder consumir conteúdo?
Bom, essa dúvida foi sanada quando, tal qual esse meu amigo se ofereceu (generosamente) a me ajudar com o Internet Banking, minha irmã generosamente se ofereceu para me tirar da Idade da Pedra, me apresentando ao maravilhoso mundo da Netflix e compartilhando a conta dela comigo.
Hoje, apenas alguns meses depois, entendo porque tanta gente gosta de Netflix.
Por tanta gente, quero dizer mais de 200 milhões de assinantes ao redor do mundo. Pois é. Em janeiro de 2021, a Netflix cruzou a barreira de 200 milhões de assinantes. Isso é praticamente toda a população do Brasil. E estamos falando apenas dos assinantes, sem contar todos aqueles com quem esses assinantes compartilham a conta.
Todo esse mundaréu de gente está espalhado por mais de 190 países, do Brasil ao Japão, dos Emirados Árabes à Austrália. Agora vem a pergunta: quando você tem uma empresa que precisa se comunicar com tanta gente, tantas culturas, em tantos países e em tantos idiomas, como você mantém uma uniformidade, uma coerência na comunicação?
Bom, é para isso que existem os chamados brand books, ou branding guidelines. Como o próprio nome diz, um brand book é – grossíssimo modo –, o “manual” da marca. Ele aborda tudo que se refere à forma com que a empresa deve se comunicar com seu público: desde tom de voz e tipografia até que tipo de foto e quais cores devem ser usados.
Toda empresa com abrangência global tem um desses manuais. A Coca-Cola tem. O Google tem. A Unilever tem. A Uber tem. Todas tem. E não é diferente com a Netflix.




O que é, sim, diferente no caso da Netflix, é que o guide deles tem uma abordagem conceitual.
Quem revela isso é Ryan Moore, diretor de criação da agência nova-iorquina Gretel, que em 2015 desenvolveu o branding guideline atual da Netflix. Segundo suas próprias palavras, em entrevista para a revista americana Fast Company, ele diz:
“O grande desafio era unificar tudo, (...) a marca em si estava um pouco fraturada, porque a Netflix estava trabalhando com parceiros e agências espalhados por todo o mundo. (...) O que a Netflix precisava era de uma ideia que costurasse tudo – uma abordagem conceitual –, (...) um sistema visual que todas essas agências pudessem usar e adaptar para qualquer formato que precisassem.”
O conceito usado para a criação deste guideline foi o de “seleção e curadoria”.
E por quê? (com conceitos, tudo sempre tem um porquê, lembra? ;o))
Simples. Para mostrar que a Netflix é, sim, um catálogo de filmes. Mas sobretudo, é alguém que faz a curadoria do conteúdo que a gente assiste, selecionando aquilo que é mais legal, relevante, divertido e customizado para cada um de nós.
Brilhante, né?
Mais brilhante ainda foi como a agência transformou esse conceito em branding guideline. Mas antes de entrar em mais detalhes neste processo, gostaria de antes focar nas palavras de Ryan Moore. Principalmente, as que deixei em negrito.
Ele diz que o grande desafio era unificar toda a comunicação. E por que isso era um desafio? Acho que para a resposta ficar mais clara, um pouco de contexto ajuda: em 2015, quando a Gretel foi contratada para desenvolver esse brand book, a Netflix estava presente em 65 países. Acontece que ela já tinha um plano traçado e pronto para ser posto em prática já em janeiro de 2016: expandir suas operações para 130 países.
O desafio a que Moore se refere era exatamente esse: como dobrar a presença global da Netflix de 65 para 130 países, sem comprometer a coerência textual e visual da empresa em todos esses diferentes mercados?
Em outras palavras, como unificar toda a comunicação?
A resposta veio na forma de uma ideia. De um conceito.
Para nós, criativos, isso não é exatamente uma surpresa. Pelo menos, não deveria ser. Afinal, uma das qualidades mais valiosas de um conceito é seu poder de equalizar a compreensão. Usamos conceitos para ajudar as pessoas:
1) a entenderem o mundo ao seu redor e
2) a entenderem uma às outras.
Acho que ficou um pouquinho confuso, né? Bom, com um exemplo fica bem mais fácil de entender.
Essa minha irmã que me apresentou ao maravilhoso mundo da Netflix é, ela mesma, uma fonte inesgotável de histórias. A mulher praticamente nasceu com rodas nos pés: viaja desde cedo, e possui uma cultura invejável. Em uma de suas andanças pelo mundo, ela foi parar em Madagascar. E voltou de lá falando sobre quão majestosos são os baobás.
Eu assim: bao- quê? o que é isso?
Fiquei tentando adivinhar.
Seriam membros de alguma tribo, como os Himbas da Namíbia e os Konsos da Etiópia?
Ou seria algum animal endêmico à maior ilha do continente africano, como as fossas e os lêmures- de-cauda-anelada?






Afinal, do que minha irmã estava falando? Que raios é um baobá?
Ele respondeu: uma árvore.
E de repente, o mar se abriu. Tudo fez sentido. Agora sim, estávamos na mesma página.
Ao usar o conceito de árvore, de uma hora para a outra, passamos a nos entender. Eu passei a compreender o que ela estava falando porque passei a usar o mesmo conceito que ela: “ah, ok, estamos falando de uma árvore”. A partir daquele momento, estávamos funcionando na mesma frequência. Nossa compreensão se equalizou.



Neste caso, estávamos falando particularmente de um baobá. E eu uso a palavra “particularmente” de propósito.
Se vocês estão lendo este post, passaram pela introdução lá em cima e sabem que o nome deste blog é uma pequena homenagem a Platão, o cara da caverna.
Pois é. Além do mito da caverna, ele foi o cara que criou uma das teorias mais lindas e dramáticas da História do pensamento ocidental: a “Teoria das Formas”. E nessa teoria, ele diz que o universo é composto por “formas” e “particulares”.
(Peraí! Não vai embora ainda, não! Juro que o momento filosofia nerd é rápido. São só os dois próximos parágrafos ;o))
Platão.
Aluno de Sócrates.
Professor de Aristóteles.
O cara da caverna.
E da Teoria das Formas.
A Teoria das Formas é bem simples (talvez por isso, seja tão genial). Segundo ela:
Existe a “forma da árvore” (que é o “conceito de árvore”, a ideia que temos de uma árvore).
E existem as “árvores particulares” (por isso usei a palavra particularmente): o baobá, a sequóia, o pinheiro, o eucalipto, etc.
Você pode até não saber o que é uma sequóia. Mas se eu disser que é uma árvore, você entende, né?
Por exemplo, imagine que estamos tendo uma conversa despretensiosa, comendo uma pizza. Aí, eu digo palavra” árvore”.
Eu não sei em qual árvore, particularmente, você está pensando. Mas sei que a forma dela é provavelmente composta por um tronco vertical, uns galhos, e uma copa.
É isso. Simples, não?
Existem as formas. E existem os particulares. (Pronto, acabou! Não falei que ia ser rápido? ;o))
Os conceitos são as formas.
E a maneira que a agência Gretel transformou o conceito de seleção e curadoria foi super particular: algo que eles chamaram de The Stack.
A ideia expressa pelo The Stack é a seguinte: imagine três cartõezinhos organizados como no video abaixo.
Agora imagine que cada um desses três cartões represente um filme, um show, uma série ou um documentário da Netflix.
Finalmente, e essa é para vocês que não faltaram na aula de análise combinatória na escola, faça as contas: tendo em vista todo o catálogo de atrações de Netflix, quantas combinações dá para fazer brincando com esses três cartõezinhos?
Eu não sei a resposta, mas sei que deve ser algo perto de infinito. E é exatamente o que a Gretel quis passar com o The Stack: a ideia de que a Netflix é um catálogo vivo e infinito de atrações, que está sempre em expansão. Ou seja, sempre haverá novidades ou algo para ver.
Outra coisa: a Gretel sabia que seria simplesmente impossível supervisionar todos os criativos, designers e diretores de arte que trabalhariam na comunicação da Netflix ao redor do mundo. Por isso, ao invés de estabelecer um branding guideline com um milhão de regras, e cheio de detalhes, eles criaram um guideline que possuía, basicamente, três diretrizes.
As diretrizes referiam-se à função de cada cartão. Obrigatoriamente,
um cartão tinha de ser reservado para mostrar uma foto da atração,
um tinha de mostrar uma das cores básicas da Netflix (preto, branco ou vermelho) e
um tinha de ser exclusivamente usado para textos.
Era isso. Nada mais. Quem decidia a ordem dos cartões, a “largura” dos cartões, a animação, era o designer. Ponto final. Mais simples, impossível.
Tal simplicidade foi rapidamente recompensada.
Assim que o novo brand book foi revelado, críticas e análises positivas vieram de todos os lados. O site Logo Design Love o descreveu como “uma das identidades mais fortes e completas dos últimos anos”. Já a publicação Fast Company o qualificou como “uma linguagem de branding universal, que funciona tanto para outdoors gigantes como para minúsculos aplicativos para iPhones”.
A prova cabal do sucesso do The Stack veio em 2018, quando a Netflix foi votada a marca mais simples do mundo, segundo o relatório “Simplicity Index”, superando marcas como Google, McDonald’s e Spotify. O ranking usa critérios como “facilidade de usar o serviço”, “percepção do consumidor com relação à empresa” e, acima de tudo, clareza da identidade de marca.
O “Simplicity Index” foi criado e é elaborado pela agência de branding Siegel+Gale, que além de cuidar de marcas como a 3M (o grupo multinacional de tecnologia diversificada) e a HP (empresa de tecnologia), também criou o logo da NBA (a liga de basquete americana).
Falando em logo, o da Netflix, além de super simples, também é super conceitual: trata-se de uma referência ao chamado Cinemascope, que nada mais é que o processo que possibilitou a exibição de filmes em formato widescreen. A escolha das cores vermelha e preta também tem um porquê: segundo a própria Netflix, essas cores foram escolhidas para criar a sensação premium de se estar no cinema.
Eu amo isso em conceitos: o fato de que que tudo sempre tem uma razão. Mas existe outro motivo pelo qual eu amo e admiro tanto o mundo conceitual. Conceitos são unificadores. Atemporais. Universais. Uma árvore é uma árvore em qualquer lugar do mundo. Sempre foi e sempre será.
Neste sentido, é o contrário da tecnologia, que muda o tempo todo, em todo lugar. E que por isso, pelo menos a meu ver, tende a dividir mais do que unificar.
Querem um exemplo? É só pegarmos o conceito de rede social.
Hoje, aparentemente, “velhos” usam Facebook, “jovens” usam Instagram.
Ontem, era Snapchat; hoje, é Tik Tok.
No Brasil, é WhatsApp. Na China, é WeChat.
A tecnologia muda.
O conceito, não: ainda estamos falando de redes sociais.
Ele é o mesmo, tanto para os “velhos” quanto para os “jovens” (unificador).
Ele é o mesmo; ontem e hoje (atemporal).
Ele é o mesmo, seja no Brasil ou na China (universal).
Por isso, sempre foi mais fácil para mim entender e navegar no mundo conceitual do que acompanhar o aceleradíssimo e inconstante universo da tecnologia. Mas isso não significa que eu não enxergue os benefícios da tecnologia. Longe disso. Eu super reconheço que ela não é de todo ruim. Sem dúvida, ela tem suas vantagens.
Por exemplo: ter aprendido a mexer no Internet Banking, por mais difícil que tenha sido (para alguém tosco e inábil como eu), trouxe, sim, uma enorme vantagem. E nem é o fato de que agora eu não perco mais tempo em filas de banco.
É porque sobra mais tempo para assistir Netflix. ;o)
Com vocês, o brilhante The Stack.







