O Valor Conceitual

Esta é a parte três de três sobre a história do logo criado por Paula Scher para o Citigroup

Durante uma conversa com a Design Interview 1Q, em abril de 2020, Scher foi confrontada com a seguinte pergunta:

“Para você, o que é design?”

Esta foi sua resposta:

 
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O que eu faço como designer é tornar as coisas reconhecíveis e compreensíveis.
Eu crio um tipo de espírito que as pessoas conseguem reconhecer e associar a algo que lhe dá um significado específico.
— Paula Scher
 

Eu fico me perguntando se o que a Scher chama de “espírito” não é, na verdade, o conceito por trás de cada uma de suas obras. Eu gosto de pensar que é. Bem, no fundo no fundo, eu sei que é.

Porque é para isso que servem os conceitos: eles dão vida a algo que, do contrário, seria apenas forma e matéria. E ao fazê-lo, eles nos ajudam a reconhecer e compreender o mundo ao nosso redor.

1.     Ser visto como mais do que apenas forma e matéria
2.    Ser reconhecido
3.    Ser compreendido

Alguém de vocês já se sentiu assim? Como se tivesse sido realmente e verdadeiramente visto. Completamente reconhecido. Totalmente compreendido.

Você já se sentiu como se, de fato, importasse?

Se já, então, você faz parte de um clube muito exclusivo. A maioria de nós nunca se sentiu assim. Aliás, a maioria de nós passa a vida toda tentando experimentar essa sensação. Infelizmente, em vão.

Mas e se alguém pudesse nos ajudar a encerrar essa interminável busca em questão de segundos?
Quanto você estaria disposto a pagar por isso?

Voltando ao sketch de Scher, aparentemente, para o pessoal do Citigroup, a resposta foi 1.5 milhão de dólares.

Foi justo?
Foi muito caro?
Ou foi uma completa barganha?

 

Antes de tentarmos responder, deixe-me fazer uma perguntinha.

Quem aqui já assistiu ao filme de 1998 “Mensagem Pra Você” (sim, eu sou fã de comédias românticas), com o Tom Hanks e a Meg Ryan?

Trata-se de um filme baseado em outra comédia romântica, estrelado pelo mesmo casal de atores, “Sintonia de Amor” (1993), na qual os protagonistas trocam cartas ao invés de emails.

Em uma nota pessoal, gostaria de deixar um recado para a brilhante e saudosa Norah Ephron, que dirigiu os dois longas: obrigado. Obrigado por trazer uma alegria extraordinária para nossas vidas tão ordinárias.

E por nos dar inúmeras razões para sorrir, e sobretudo, para acreditar no amor. ;o)

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Ok, voltando ao assunto em questão.

Há uma cena em que os atores Tom Hanks (que interpreta Joe Fox, o dono de uma rede de mega livrarias) e Steve Zahn (que interpreta um funcionário da livraria de bairro ‘The Shop Around the Corner’, que pertence à personagem da Meg Ryan) estão folheando um livro infantil, que foi cuidadosamente e inteiramente ilustrado à mão.

A visão de Zahn é clara: não se trata de um livro, mas de uma obra de arte.
As ilustrações não servem apenas para apoiar a história; elas funcionam como prova do compromisso que o autor teve ao escrever o livro.
Para Zahn, este livro não é uma mercadoria que deve ser comercializada com base em seu custo, mas sim, uma peça de arte que deve ser negociada com base em seu valor.

A visão de Hanks’ é completamente oposta.
Como um homem de negócios, e dono de uma rede de mega livrarias, um livro é exatamente isso: uma simples mercadoria.

Esses diferentes pontos de vista, inevitavelmente, acabam colidindo, e resultam na cena abaixo.

 

O diálogo começa no 2’42”

Steve Zahn: As…huh…ilustrações são feitas à mão.
Tom Hanks: É por isso que custa tanto? 
Steve Zahn: Não. É por isso que VALE tanto.

O conflito de opiniões se dá por um motivo simples.

O personagem de Tom Hanks está falando de PREÇO.
O personagem de Steve Zahn está falando de VALOR.

Duas coisas COMPLETAMENTE distintas.

Mas no mundo atual, tal qual o conhecemos, essas duas coisas - PREÇO e VALOR - PRECISAM coexistir.

E o truque está em encontrar onde é esse ponto de convergência.

 

Ok, voltando à pergunta: 1,5 milhão de dólares para ajudar uma organização financeira multinacional a experimentar o mais raro dos sentimentos – através de uma identidade de marca conceitual – criada em questão de segundos, por alguém com 34 anos de experiência comprovada.

É justo?
Muito caro?
Ou uma barganha completa?

O meu lado que não entende nada de finanças me diz que foi uma barganha total (afinal de contas, estamos falando de um acordo de 70 bilhões de dólares, poxa...;o))
Mas brincadeiras à parte, honestamente, eu não acho que tenha a resposta. Eu não sei nem mesmo se existe UMA resposta correta.

Porém, eu sei de algo que gostaria de compartilhar com vocês e que pode ajudar a elucidar essa questão.

No comecinho (6’40” - 7’36”) do seu episódio da série Abstract, da Netflix, Scher diz:

 
A tipografia tem um enorme poder. (...) Sem nem precisar ler, já notamos sua sensibilidade e espírito. Combine isso a um SIGNIFICADO, e você chega a algo espetacular!
— Paula Scher
 

Com isso em mente, talvez a pergunta não deveria ser sobre quanto uma idéia pode custar nem sobre como nossos clientes podem se sentir com relação a esse preço. Talvez a pergunta que deveríamos fazer – a todo e qualquer cliente que nos solicitar um conceito – seja a seguinte:

A sensação de ser visto, reconhecido e compreendido tem VALOR para você?
Se sim, quanto ela SIGNIFICA para você?

Por definição, um conceito é uma abstração. Neste sentido, é normal que seja difícil de se atribuir um número fixo e exato a algo tão complexo e imaterial.

No entanto, as indústrias criativas (e o mundo em que nós vivemos, na verdade) são estruturados para operar de acordo com regras econômicas, o que significa que dinheiro sempre fará parte da conversa. Ou seja, sempre que criarmos um conceito para um cliente, em algum momento, querendo ou não, inevitavelmente teremos de falar de PREÇO.

Mas, para começo de conversa: como fazer para precificar um CONCEITO (que é, essencialmente, uma IDÉIA)?

E mais importante ainda, com fazer isso de uma maneira justa?

Estas são perguntas legítimas.

Desde o primeiro instante em que a criatividade se tornou a coluna vertebral de toda uma “indústria”, clientes e criativos têm discutido e debatido sobre isso, buscando encontrar respostas a essas perguntas, e lutando para descobrir qual a melhor forma de precificar todo tipo de ativos intangíveis e capital intelectual: de composições musicais e roteiros de cinema a conceitos publicitários e idéias de design.

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Tentamos precificar por hora.
Tentamos precificar por projeto.
Tentamos fees mensais.
Tentamos precificar com base na performance.
Tentamos comissionar arte.
Parece que já tentamos de tudo.

E ainda assim, não conseguimos chegar a um acordo sobre qual seria o modelo de precificação mais justo para ambas as partes (eu não sei nem se algo assim sequer seria possível em um mercado capitalista, mas enfim...). 

Mas tudo bem. Continuaremos tentando. Eu sei que eu vou. Até porque, já faz anos que eu venho cultivando uma ridícula quantidade de cabelos brancos tentando resolver este quebra-cabeça. Caso você queira saber um pouco mais sobre como eu acredito que idéias e conceitos deveriam ser precificados, eu recomendo as seguintes leituras.

O primeiro fala sobre o valor de coisas cujo valor é incalculável, como por exemplo, conhecimento.
O segundo discute a diferença entre o valor da estratégia (intangível) e o da execução (tangível).
O terceiro é auto-explicativo.

 
 

Por ora, que tal se a gente concordasse que algumas coisas simplesmente não podem ser precificadas?
Pare pra pensar um pouquinho. É verdade, né?

Algumas coisas, mesmo sendo extremamente e inegavelmente valiosas, não têm preço.

Por exemplo, passar tempo ao lado dos filhos.
Ou ter boa saúde.
Ou sentir que a sua identidade (seja como pessoa, seja como marca) realmente importa para alguém.

Talvez este seja o caso com conceitos e idéias. Eles possuem um valor imenso e criam um valor ainda maior. Mas ainda assim, de alguma forma, por alguma razão, simplesmente não dá para precificá-los.

Espera. Quer saber? Acho que existe uma palavra pra isso... Sim, é claro que existe.

Não, não é “grátis”.  

É “inestimável”.

 

Sources

1. ADC Hall of Fame http://adcglobal.org/hall-of-fame/paula-scher/
2. Madame Architec https://www.madamearchitect.org/interviews/2020/7/16/paula-scher
3. Eye Magazine http://www.eyemagazine.com/feature/article/reputations-paula-scher
4. Cloninger, C. (2007). Hot-Wiring Your Creative Process: Strategies for Print and New Media Designers. Berkeley, CA: New Riders, p.38.
5. On Creativity https://www.youtube.com/watch?v=foeV4ZML55s
6. Fast Company: https://www.fastcompany.com/57935/wordsmith
7. https://www.nytimes.com/1998/04/07/news/citicorp-and-travelers-plan-to-merge-in-record-70-billion-deal-a-new-no.html
8. Clever Podcast https://www.youtube.com/watch?v=YrBTLw1yPBk
9. Design Interview 1Q: https://www.youtube.com/watch?v=0ddshhUa_VQ
10. Abstract Paula Scher Episode: https://www.youtube.com/watch?v=LCfBYE97rFk
11. https://www.6sqft.com/interview-paula-scher-on-designing-the-brands-of-new-yorks-most-beloved-institutions/
12. beyondtellerrand https://beyondtellerrand.com/events/berlin-2017/speakers/paula-scher