Concepteur-rédacteur
/Não sei se já contei para vocês, mas em 2013, tive a enorme sorte de ser aceito como um dos – acho que éramos 17, se não me falha a memória – alunos a integrar o programa de Mestrado do CELSA. Situado na parte oeste de Paris, na região conhecida como Neuilly-sur-Seine, CELSA significa Centre d’Etudes Littéraires et Scientifiques Appliquées e é a Escola de Comunicação da Universidade Sorbonne.
Como eu disse, foi uma sorte enorme. Praticamente um presente dos céus. Afinal de contas, realisticamente falando, sabe quando eu iria imaginar que um dia eu teria a chance de PISAR nos corredores de uma escola dessas? Nunca. Imaginem estudar, então. Nossa, JAMAIS. Por isso, até hoje, todos os dias, sinto-me grato por ter tido essa oportunidade.
Bom, então, lá estava eu, sentindo-me um dos escolhidos de Deus, e justo quando eu imaginava que nada podia superar tamanha sorte, percebi que o ano ainda me reservava mais uma bela surpresa: através de uma amiga e colega de classe super querida, fiquei sabendo de algo chamado Journée Agences Ouvertes (JAO), que é organizada pela AACC, que significa Association des Agences-Conseils en Communication (grosso modo, trata-se de uma espécie de sindicato dos publicitários).
A Journée Agences Ouvertes, como o próprio nome diz, é um dia em que as agências de comunicação, marketing e publicidade de Paris abrem suas portas para estudantes universitários que pretendem seguir essas profissões. O objetivo é lhes dar um gostinho do “mundo real”, mostrar como uma agência funciona e, claro, abrir seus olhos e já prepará-los para o que lhes aguarda assim que eles se formarem.
Nem precisa dizer que eu agarrei essa oportunidade com unhas e dentes, né? Mesmo que eu já fosse macaco velho e já soubesse como era o tal do “mundo real” (tendo passado os 12 anos anteriores trabalhando em agências), ainda assim, fiquei super entusiasmado. Afinal, essa seria a primeira (e talvez única) chance que eu teria de visitar agências NA FRANÇA. Eu sempre fui um grande fã da publicidade francesa, então, para mim, era a oportunidade de uma vida. Eu não perderia por nada.
Esse dia foi inesquecível, por duas razões principalmente.
Foi quando, pela primeira vez, ouvi falar – durante a minha visita à agência CLM BBDO – de um cara chamado Philippe Michel. Ele é a letra ‘M” no CLM BBDO. Sim, aparentemente, essa é uma das vantagens de ser fundador de uma agência: você pode se tornar uma inicial... ;o). Enfim, esse cara se tornou um exemplo para mim. Já contei sobre isso aqui.
Bom, e a segunda razão, que mudou minha vida por sinal, é a seguinte: foi quando eu descobri que em francês, se você for um redator, o seu cargo diz: concepteur-rédacteur.
Meu queixo caiu. E minha mente explodiu.
Porque até aquele momento, apesar de eu sentir intuitivamente – e saber empiricamente –, que a conceituação representava a parte mais importante do trabalho de um redator (sintam-se à vontade para discordar, gente), essa nunca pareceu ser a impressão que a maioria das pessoas da nossa indústria tinha. E se era, até onde eu sei, ninguém tinha o costume de expressá-la em voz alta (como eu fiz tantas vezes).
Não vou mentir pra vocês: como redator que sou, a sensação que eu tive ao ver meu cargo sendo descrito de forma tão precisa e exata – pela primeira vez – foi de redenção. Para mim, concepteur-redácteur não deixa margem para dúvidas: como redatores, nosso trabalho é PENSAR. Para então, e somente então, escrever.
E por que isso mudou minha vida?
Porque me deu permissão (e confiança) para quebrar e me livrar de uma mentalidade extremamente incorreta e prejudicial: a de que o trabalho de conceituar e o de escrever são inextricavelmente um, como duas metades de uma laranja, e como tal, só podem existir em uníssono.
Isso não é verdade. Nunca foi. E nunca será.
Mas se isso não é verdade, então por que a versão mais amplamente aceita é aquela que diz que a redação publicitária é uma combinação indivisível entre pensar e escrever? E por que a ideia de separá-los parece tão absurda?
Meu palpite é o seguinte: porque para que haja um pagamento (por parte do cliente), é preciso que haja uma entrega (por parte da agência). E por alguma razão, em todas as indústrias, em todos os mercados, desde o início dos tempos, convencionou-se que entregas devem ser concretas. Tangíveis.
No caso da redação publicitária, isso quer dizer o texto. O título. O slogan. A chamada. As palavras.
Da forma que o mercado publicitário funciona hoje, todo trabalho de pensamento, reflexão e abstração imprescindível para a redação dessas palavras parece não contar. Independente de quão genial seja a ideia, infelizmente, ela só será vista como uma entrega uma vez que for expressa e apresentada em palavras, quando for redigida.
Pessoalmente, eu não concordo com esse jeito de enxergar as coisas. Nunca concordei. E não foi por falta de tentar. Juro: eu tentei concordar. Tentei compactuar com as regras vigentes da nossa indústria. Tentei aceitar as convenções. Mas sempre falhei de maneira monumental. Até hoje, minha convicção continua a mesma que sempre foi, desde que eu era um estudante na faculdade: na redação publicitária, sempre existem DUAS entregas.
O conceito (fruto do trabalho de pensar)
O texto que nasce desse conceito (fruto do trabalho de escrever)
E AMBAS devem ser financeiramente remuneradas.
Eis uma história que eu gostaria de dividir com vocês. Aconteceu um dia quando eu fui conversar com uma diretora de arte para avisá-la de que a agência acabara de ganhar uma nova conta e que iríamos trabalhar juntos nessa conta.
Eu: Você ficou sabendo? A agência ganhou uma nova conta. E parece que nós seremos a dupla de criação responsável por essa conta!
Ela: Eba! Que notícia boa! Qual conta?
Eu: Uma conta global.
Ela: Ahh, legal. Então, isso quer dizer que teremos apenas de adaptar a campanha global para o Brasil?
Eu: Não. Poderemos criar um conceito novo!
Ela: Ahhhhh... Sério? Eu detesto conceituar...
(Pausa dramática)
Eu: Hmmm... Desculpa. Como é que é? Você o quê...?
Ela: Eu não gosto de criar conceitos.
Eu: Mas essa é a parte MAIS LEGAL do nosso trabalho! Criar. Conceituar. Construir um mundo completamente novo do nada! Essa é a melhor parte! Como você não gosta?
Ela: É. Mas não. Não curto. Gosto da parte de executar.
Por mais surpreso que eu tenha ficado na hora, em retrospecto, aquele momento se revelou uma epifania. Porque foi lá, naquele instante e lugar, que eu descobri que nem todo criativo gosta do processo de ideação ou se destaca no processo de conceituação.
Eis as outras lições que tirei daquele diálogo.
Aprendi que alguns de nós são incrivelmente bons em criar conceitos, mas não são particularmente os melhores na execução.
Aprendi que alguns de nós sofrem – sofrem de verdade – quando têm de conceituar, mas amam e são extremamente bons em executar.
Aprendi que alguns de nós são imensamente talentosos em ambos (ok, talvez ELES sejam os escolhidos de Deus...;o))
Este é o tipo de coisa que, uma vez que você vê, não pode mais não ver. Então, comecei a pensar. Talvez quando os franceses dizem concepteur-rédacteur, é mais ou menos como se nós disséssemos compositor-cantor. Lembra que no post passado falamos da Alicia Keys? Ela é uma compositora (ela cria a música, escreve as letras, compõe a melodia) e uma cantora (ela executa tudo isso).
E embora neste caso estejamos falando de uma artista – uma artista excepcional, por sinal – que consegue desempenhar ambas as tarefas, nós também sabemos que cantar e compor são métiers diferentes. Claro, eles quase sempre estão juntos. Claro, você sempre os vê lado a lado. E claro, eles se complementam. Mas no final, todos nós compreendemos que se trata de dois métiers diferentes.
Existem pessoas que se sentem mais confortáveis compondo. E tudo bem.
Existem pessoas cujas habilidades favorecem a arte de cantar. E tudo bem também.
E daí, existem pessoas como a Alicia Keys. E neste caso, tudo ótimo. ;o))
A indústria da música entendeu faz tempo que o segredo não é encontrar aquele artista raro que consegue fazer as duas coisas. O segredo está na colaboração. Pense comigo: os álbuns mais incríveis, as canções mais icônicas, as trilhas mais atemporais e as músicas mais inesquecíveis. Todas elas foram e continuam sendo fruto de um trabalho de colaboração entre artistas, cada um fazendo o que faz de melhor.
Espero que um dia, em um futuro próximo, a indústra de comunicação, publicidade e marketing siga esses mesmos passos. E quando esse dia chegar, espero estar vivo para ver algum estudante na França (ou em qualquer outro lugar do mundo) ter a chance de escolher entre três opções de carreira, ao invés de apenas uma.
Tornar-se concepteur-rédacteur.
Tornar-se concepteur.
Tornar-se rédacteur.
E se por acaso ele ou ela decida optar pela alternativa 2, espero que eles considerem se juntar a mim (na minha versão idosa e decrépita) nessa insana, linda e divertida jornada rumo ao mundo conceitual. ;o)