3-hour drive

Vocês já assitiram a uma série documental da Netflix chamada “Por Trás Daquele Som”?

O título original é “Song Exploder” e o programa é apresentado pelo músico e compositor americano Hrishikesh Hirway. Enquanto escrevo este post, a série está em sua segunda temporada, e um total de oito episódios já foram exibidos.

Nos episódios, artistas consagrados revelam detalhes do processo criativo por trás de algumas de suas canções de maior sucesso: por exemplo, a banda R.E.M falando sobre a canção “Losing My Religion”, Trent Reznor (da banda Nine Inch Nails) discutindo a música “Hurt” e Alicia Keys recontando como foi a criação de 3 Hour Drive, que ela compôs em parceria com o músico e produtor britânico Sampha.

Neste post, gostaria de destacar um trecho que me chamou muitíssimo a atenção e que está no primeiro episódio da primeira temporada, protagonizado pela cantora e compositora americana Alicia Keys.

 
 

Não vou dar spoilers, prometo.

O trecho mostra Alicia Keys, Sampha e o produtor musical britânico Jimmy Napes no estúdio, compondo. No entanto, eles parecem estar “patinando” criativamente e com dificuldade de encontrar as palavras certas para as letras da canção.

Jimmy Napes explica a razão do bloqueio criativo do trio:

 

“Tínhamos acordes lindos, uma melodia incrível, mas faltava… CONCEITO.
E apesar de o sentimento estar lá, às vezes, é só assim que as músicas nascem”.

 

O documentário continua, e vemos o trio ainda com dificuldades de compôr, até que Napes – que estava ao piano – para de tocar, vira para Keys e Sampha e diz: “precisamos saber e pensar sobre o que estamos falando”.

Keys lembra dessa ocasião, sorrindo: “Jimmy simplesmente virou e disse: ‘precisamos descobrir sobre o que estamos escrevendo!’ Ele é um cara prático (risos)”.

O nome da canção é “3 Hour Drive”, e para encontrar o conceito por trás dela, o trio passou a se fazer a seguinte pergunta:

“Por que o protagonista da canção embarcou nessa viagem, dirigindo por três horas?"

A primeira a levantar a questão foi Keys:

Alicia Keys

Sabíamos que havíamos gostado da ideia de uma “viagem de três horas” (three-hour drive). Nós curtimos aquilo, porque era mais ou menos como se estivéssemos nos perguntando “o que isso significa? Uma viagem de três horas?

Para onde estamos indo?

 

Sampha deu sequência ao raciocínio de Keys, dando seus próprios insights:

 

Sampha

“A ideia de uma viagem de três horas, sei lá, acho que te dá aquela essa sensação de alguém que está passando por algo, sabe? Existe algo de super reflexivo nisso. E catártico também”.

 

Finalmente, Napes conclui o raciocínio, dizendo que:

 

Jimmy Napes

Eu penso que seja algo como “nem eu, nem você”. Não existe eu. Não existe você. Sabe, é mais como…

VOCÊ ME DÁ VIDA. (YOU GIVE ME LIFE)”.

E assim, o trio chegou no conceito.

Eis o que Keys disse sobre o instante em que o conceito nasceu:

“Quando chegamos em “VOCÊ ME DÁ VIDA, foi tipo, uma celebração, porque deu pra sentir.
Foi, tipo:
É ISSO!
Era isso que a gente estava procurando.
É tão simples, mas significa tanto.
“Você me dá vida (You give me life) significa absolutamente tudo”.

Pronto, parei.
Viremos até aqui.
Espero não ter dado nenhum spoiler.

O ponto que eu queria fazer é que eu nunca tinha ouvido falar que músicos, quando estão criando, também se valem de conceitos.

A única ocasião em que eu entendia a presença de conceitos no universo musical era quando se falava em álbuns conceituais. E pelo menos na minha experiência, isso é um território habitado majoritariamente pelas chamadas “bandas de rock progressivo” e não artistas como Alicia Keys.

Só para vocês terem uma ideia do que estou falando, alguns dos meus álbuns conceituais favoritos são:

  1. O majestoso Metropolis Pt. 2: Scenes from a Memory, lançado em 1999 pelos americanos do Dream Theater;

  2. O extraordinário The Wall, lançado em 1979, pelos britânicos do Pink Floyd;

  3. e claro, ocupando o topo da lista, o soberbo e incomparável The Dark Side of the Moon, lançado em 1973, também pelo Pink Floyd.

Até assistir a esse documentário, era isso – única e exclusivamente isso – que eu entendia por “músicas com conceito”: bandas de rock progressivo tocando solos intermináveis, em canções que duram mais de 20 minutos cada, falando sobre temas como “a decadência e as idiossincrasias da condição humana”. ;o)

Por isso, foi muito revigorante ver como o processo de criação musical, de qualquer gênero musical, também necessita de conceitos.
Foi muito estimulante ver como o processo de criação ganhou sentido uma vez que o conceito foi encontrado.
E foi catártico perceber que o conceito nasceu a partir do momento em que o trio de músicos se perguntou:

“POR QUÊ”?

“Por que embarcar em uma viagem de 3 horas?”.

O que está por trás dessa viagem?
Aonde se quer chegar?
Do que se está fugindo?
Quais pensamentos acompanham essa viagem?

Já vimos que os melhores conceitos nascem dos melhores questionamentos.
E neste caso, todos giravam em torno de um questionamento mestre: “Por que fazer essa viagem?”

É aquela velha história: com conceitos, SEMPRE existe um porquê.
E no caso de “3-hour drive” não é diferente.
Existe um porquê.

Mas não posso contar porque prometi que não ia dar spoilers. E promessa é dívida.

Então, sugiro que larguem tudo o que estão fazendo, embarquem neste episódio com Alicia Keys, Jimmy Napes e Sampha e descubram por si mesmos.

Garanto que vocês não vão se arrepender.

Boa viagem!

O Valor Conceitual

Esta é a parte três de três sobre a história do logo criado por Paula Scher para o Citigroup

Durante uma conversa com a Design Interview 1Q, em abril de 2020, Scher foi confrontada com a seguinte pergunta:

“Para você, o que é design?”

Esta foi sua resposta:

 
paula_scher.jpg
 
O que eu faço como designer é tornar as coisas reconhecíveis e compreensíveis.
Eu crio um tipo de espírito que as pessoas conseguem reconhecer e associar a algo que lhe dá um significado específico.
— Paula Scher
 

Eu fico me perguntando se o que a Scher chama de “espírito” não é, na verdade, o conceito por trás de cada uma de suas obras. Eu gosto de pensar que é. Bem, no fundo no fundo, eu sei que é.

Porque é para isso que servem os conceitos: eles dão vida a algo que, do contrário, seria apenas forma e matéria. E ao fazê-lo, eles nos ajudam a reconhecer e compreender o mundo ao nosso redor.

1.     Ser visto como mais do que apenas forma e matéria
2.    Ser reconhecido
3.    Ser compreendido

Alguém de vocês já se sentiu assim? Como se tivesse sido realmente e verdadeiramente visto. Completamente reconhecido. Totalmente compreendido.

Você já se sentiu como se, de fato, importasse?

Se já, então, você faz parte de um clube muito exclusivo. A maioria de nós nunca se sentiu assim. Aliás, a maioria de nós passa a vida toda tentando experimentar essa sensação. Infelizmente, em vão.

Mas e se alguém pudesse nos ajudar a encerrar essa interminável busca em questão de segundos?
Quanto você estaria disposto a pagar por isso?

Voltando ao sketch de Scher, aparentemente, para o pessoal do Citigroup, a resposta foi 1.5 milhão de dólares.

Foi justo?
Foi muito caro?
Ou foi uma completa barganha?

 

Antes de tentarmos responder, deixe-me fazer uma perguntinha.

Quem aqui já assistiu ao filme de 1998 “Mensagem Pra Você” (sim, eu sou fã de comédias românticas), com o Tom Hanks e a Meg Ryan?

Trata-se de um filme baseado em outra comédia romântica, estrelado pelo mesmo casal de atores, “Sintonia de Amor” (1993), na qual os protagonistas trocam cartas ao invés de emails.

Em uma nota pessoal, gostaria de deixar um recado para a brilhante e saudosa Norah Ephron, que dirigiu os dois longas: obrigado. Obrigado por trazer uma alegria extraordinária para nossas vidas tão ordinárias.

E por nos dar inúmeras razões para sorrir, e sobretudo, para acreditar no amor. ;o)

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Ok, voltando ao assunto em questão.

Há uma cena em que os atores Tom Hanks (que interpreta Joe Fox, o dono de uma rede de mega livrarias) e Steve Zahn (que interpreta um funcionário da livraria de bairro ‘The Shop Around the Corner’, que pertence à personagem da Meg Ryan) estão folheando um livro infantil, que foi cuidadosamente e inteiramente ilustrado à mão.

A visão de Zahn é clara: não se trata de um livro, mas de uma obra de arte.
As ilustrações não servem apenas para apoiar a história; elas funcionam como prova do compromisso que o autor teve ao escrever o livro.
Para Zahn, este livro não é uma mercadoria que deve ser comercializada com base em seu custo, mas sim, uma peça de arte que deve ser negociada com base em seu valor.

A visão de Hanks’ é completamente oposta.
Como um homem de negócios, e dono de uma rede de mega livrarias, um livro é exatamente isso: uma simples mercadoria.

Esses diferentes pontos de vista, inevitavelmente, acabam colidindo, e resultam na cena abaixo.

 

O diálogo começa no 2’42”

Steve Zahn: As…huh…ilustrações são feitas à mão.
Tom Hanks: É por isso que custa tanto? 
Steve Zahn: Não. É por isso que VALE tanto.

O conflito de opiniões se dá por um motivo simples.

O personagem de Tom Hanks está falando de PREÇO.
O personagem de Steve Zahn está falando de VALOR.

Duas coisas COMPLETAMENTE distintas.

Mas no mundo atual, tal qual o conhecemos, essas duas coisas - PREÇO e VALOR - PRECISAM coexistir.

E o truque está em encontrar onde é esse ponto de convergência.

 

Ok, voltando à pergunta: 1,5 milhão de dólares para ajudar uma organização financeira multinacional a experimentar o mais raro dos sentimentos – através de uma identidade de marca conceitual – criada em questão de segundos, por alguém com 34 anos de experiência comprovada.

É justo?
Muito caro?
Ou uma barganha completa?

O meu lado que não entende nada de finanças me diz que foi uma barganha total (afinal de contas, estamos falando de um acordo de 70 bilhões de dólares, poxa...;o))
Mas brincadeiras à parte, honestamente, eu não acho que tenha a resposta. Eu não sei nem mesmo se existe UMA resposta correta.

Porém, eu sei de algo que gostaria de compartilhar com vocês e que pode ajudar a elucidar essa questão.

No comecinho (6’40” - 7’36”) do seu episódio da série Abstract, da Netflix, Scher diz:

 
A tipografia tem um enorme poder. (...) Sem nem precisar ler, já notamos sua sensibilidade e espírito. Combine isso a um SIGNIFICADO, e você chega a algo espetacular!
— Paula Scher
 

Com isso em mente, talvez a pergunta não deveria ser sobre quanto uma idéia pode custar nem sobre como nossos clientes podem se sentir com relação a esse preço. Talvez a pergunta que deveríamos fazer – a todo e qualquer cliente que nos solicitar um conceito – seja a seguinte:

A sensação de ser visto, reconhecido e compreendido tem VALOR para você?
Se sim, quanto ela SIGNIFICA para você?

Por definição, um conceito é uma abstração. Neste sentido, é normal que seja difícil de se atribuir um número fixo e exato a algo tão complexo e imaterial.

No entanto, as indústrias criativas (e o mundo em que nós vivemos, na verdade) são estruturados para operar de acordo com regras econômicas, o que significa que dinheiro sempre fará parte da conversa. Ou seja, sempre que criarmos um conceito para um cliente, em algum momento, querendo ou não, inevitavelmente teremos de falar de PREÇO.

Mas, para começo de conversa: como fazer para precificar um CONCEITO (que é, essencialmente, uma IDÉIA)?

E mais importante ainda, com fazer isso de uma maneira justa?

Estas são perguntas legítimas.

Desde o primeiro instante em que a criatividade se tornou a coluna vertebral de toda uma “indústria”, clientes e criativos têm discutido e debatido sobre isso, buscando encontrar respostas a essas perguntas, e lutando para descobrir qual a melhor forma de precificar todo tipo de ativos intangíveis e capital intelectual: de composições musicais e roteiros de cinema a conceitos publicitários e idéias de design.

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Tentamos precificar por hora.
Tentamos precificar por projeto.
Tentamos fees mensais.
Tentamos precificar com base na performance.
Tentamos comissionar arte.
Parece que já tentamos de tudo.

E ainda assim, não conseguimos chegar a um acordo sobre qual seria o modelo de precificação mais justo para ambas as partes (eu não sei nem se algo assim sequer seria possível em um mercado capitalista, mas enfim...). 

Mas tudo bem. Continuaremos tentando. Eu sei que eu vou. Até porque, já faz anos que eu venho cultivando uma ridícula quantidade de cabelos brancos tentando resolver este quebra-cabeça. Caso você queira saber um pouco mais sobre como eu acredito que idéias e conceitos deveriam ser precificados, eu recomendo as seguintes leituras.

O primeiro fala sobre o valor de coisas cujo valor é incalculável, como por exemplo, conhecimento.
O segundo discute a diferença entre o valor da estratégia (intangível) e o da execução (tangível).
O terceiro é auto-explicativo.

 
 

Por ora, que tal se a gente concordasse que algumas coisas simplesmente não podem ser precificadas?
Pare pra pensar um pouquinho. É verdade, né?

Algumas coisas, mesmo sendo extremamente e inegavelmente valiosas, não têm preço.

Por exemplo, passar tempo ao lado dos filhos.
Ou ter boa saúde.
Ou sentir que a sua identidade (seja como pessoa, seja como marca) realmente importa para alguém.

Talvez este seja o caso com conceitos e idéias. Eles possuem um valor imenso e criam um valor ainda maior. Mas ainda assim, de alguma forma, por alguma razão, simplesmente não dá para precificá-los.

Espera. Quer saber? Acho que existe uma palavra pra isso... Sim, é claro que existe.

Não, não é “grátis”.  

É “inestimável”.

 

Sources

1. ADC Hall of Fame http://adcglobal.org/hall-of-fame/paula-scher/
2. Madame Architec https://www.madamearchitect.org/interviews/2020/7/16/paula-scher
3. Eye Magazine http://www.eyemagazine.com/feature/article/reputations-paula-scher
4. Cloninger, C. (2007). Hot-Wiring Your Creative Process: Strategies for Print and New Media Designers. Berkeley, CA: New Riders, p.38.
5. On Creativity https://www.youtube.com/watch?v=foeV4ZML55s
6. Fast Company: https://www.fastcompany.com/57935/wordsmith
7. https://www.nytimes.com/1998/04/07/news/citicorp-and-travelers-plan-to-merge-in-record-70-billion-deal-a-new-no.html
8. Clever Podcast https://www.youtube.com/watch?v=YrBTLw1yPBk
9. Design Interview 1Q: https://www.youtube.com/watch?v=0ddshhUa_VQ
10. Abstract Paula Scher Episode: https://www.youtube.com/watch?v=LCfBYE97rFk
11. https://www.6sqft.com/interview-paula-scher-on-designing-the-brands-of-new-yorks-most-beloved-institutions/
12. beyondtellerrand https://beyondtellerrand.com/events/berlin-2017/speakers/paula-scher

O Logo Conceitual

Esta é a parte dois de três sobre a história do logo criado por Paula Scher para o Citigroup

No final do último post, mencionamos o livro “Hot-Wiring Your Creative Process: Strategies for Print and New Media Designers”, escrito por Curt Cloninger.

Eu super recomendo. De verdade. O livro é super fácil de ler, traz reflexões interessantíssimas e fala sobre um dos assuntos mais complicados e intrigantes do mundo: a criatividade (que, vamos combinar, também é um dos assuntos mais legais e divertidos do mundo). Vou deixar o link aqui, caso vocês queiram baixar o pdf, ok? Porém, se vocês não estiverem com tempo ou vontade de ler a obra toda, então pelo menos gastem alguns minutinhos para ler as páginas postadas abaixo.

Mas o que há de tão imprescindível nessas páginas?

Bem, é muito simples. O livro tem um total de 254 páginas, organizadas em 10 capítulos que abordam aproximadamente 50 tópicos diferentes. Tópicos que, em maior ou menor grau, de alguma maneira, compõem a malha daquilo que conhecemos por “criatividade”. Um desse tópicos é intitulado OVERVALUE THE CONCEPTUAL. Em tradução livre, seria algo como “valorize o conceito ao máximo”. Não preciso dizer que este é o meu tópico favorito do livro, né? ;o))

Eis as primeiras palavras que o autor nos diz sobre este tópico.

“Valorize o conceito ao máximo. Se eu tivesse de dar apenas UM CONSELHO, seria esse.
O valor de um conceito é ilimitado.
— Curt Cloninger

Sério gente. Na boa. Se essas palavras não fizerem vocês quererem mergulhar nas páginas abaixo, eu não sei o que fará.

O post continua logo abaixo dessas páginas. Por ora, vou deixar vocês lerem com calma e a gente se vê em breve, ok?

Demais, né?

Bom, mas voltemos ao que Cloninger disse sobre o logo que Scher criou para o Citi.

“O Citicorp e a seguradora Travelers Group haviam passado por uma fusão, e o novo logo precisava combinar aspectos de cada uma das antigas identidades – as letras citi e o guarda-chuva vermelho do Travalers Group – de uma maneira que o resultado final não parecesse uma colcha de retalhos. Scher encontrou uma SOLUÇÃO CONCEITUAL simples para um complexo desafio em termos de design”.

Impossível de argumentar com ele. Ele está certo. Absolutamente certo. Mas a pergunta de um milhão de dólares é: o que exatamente é uma solução conceitual?

Aposto que se você fizer esta pergunta para cem pessoas, você obterá cem respostas diferentes. Na verdade, eu mesmo não tenho UMA resposta final definitiva, então, darei apenas meu humilde pitaco, ok?

Pra mim, conceituar significa simplificar as coisas para que a gente consiga compreendê-las; ou compreendê-las melhor.

Cada um faz isso à sua maneira. A minha é fazendo perguntas.

Eu pergunto.
E pergunto.
E continuo perguntando até atingir o ponto em que eu reconheço que finalmente cheguei no “X da questão”.
Quando isso acontece, as coisas se encaixam, tudo passa a fazer sentido, e eu fico em paz com o conceito em mãos.

E o X da questão, no caso do Citigroup, era que os gigantes Citicorp e Travelers Group se juntaram em uma “fusão corporativa politicamente sobrecarregada”.

Scher sabia disso.

Ela entendia que havia muitíssimo em jogo (de acordo com os jornais The New York Times e o The Wall Street Journal, a fusão foi resultado de um acordo avaliado entre 70 bilhões e 83 bilhões de dólares!).
Ela entendia que muitas pessoas estavam envolvidas nessa operação.
E ela entendia que, no que se referia à nova identidade visual do Citigroup, era dela a responsabilidade de atender às expectativas de todas essas pessoas.

Ou, como ela sabiamente afirmou no seu episódio da série Abstract, produzida pela Netflix em 2019, “design precisa levar o comportamento humano em consideração”.

Neste caso, era o comportamento de dois humanos, especificamente: Sanford Weill (presidente e CEO do Travelers Group) e John Reed (presidente e CEO do Citicorp).

 
 

“Eu sei que há pessoas na hierarquia corporativa cujas opiniões realmente valem e que são elas que vão determinar o que será feito e o que não será”, Scher disse no episódio 104 do Clever Podcast.

Em outras palavras, desde o começo, ela sabia que - ao menos internamente, para os envolvidos na transação - o logo tinha de alcançar um objetivo muito específico: ele tinha de refletir a fusão de maneira PERFEITAMENTE EQUILIBRADA.

Se você está se perguntando se ela teve êxito ou não, aqui vai um teste: dê uma olhada no logo do Citi que Scher criou (abaixo) e veja se você consegue apontar qual das duas empresas recebeu “tratamento preferencial”. Citibank ou Travelers Insurance?

Não dá pra dizer, né?  

Isso é porque Scher não só alcançou o objetivo mencionado, como o fez  com honras, usando engenhosamente a letra “t”, de Citi (que estava escrita em caixa baixa), como o cabo do guarda-chuva usado pelo Travelers Insurance. Foi uma solução excepcionalmente brilhante. E extremamente conceitual.

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Eu deixo o subconsciente assumir o controle. Assim, eu fico livre para fazer todo tipo de associação. O design demanda um estado de descontração. Se você não estiver neste estado, não consegue criar nada.
— Paula Scher

O conceito que deu origem ao logo era o de que, com a fusão, o mercado passaria a contar com um “one-stop-shop” de produtos financeiros.

De cartões de crédito e contas bancárias a seguros e investimentos, o Citigroup agora passaria a oferecer um guarda-chuva de serviços, debaixo do qual clientes teriam acesso não apenas ao expertise do Citicorp em operações tradicionais de banco de varejo, mas também à larga experiência do Travalers com seguros e corretagem.

Durante uma entrevista de 2017 com a 6sqt, um braço do website do mercado imobiliário CityRealty, a Sra. Scher afirmou que “meu objetivo é fazer com que as coisas durem”.

Dado o número de anos que o logo do Citigroup tem se mantido intacto (já são mais de duas décadas), em todo o mundo, sem uma alteração sequer, eu acho que podemos dizer que seu objetivo foi alcançado.

Existe uma razão pela qual eu acredito que a identidade de marca criada por ela para o Citigroup tenha resistido ao teste do tempo: é porque naquele dia, em 1998, quando Scher pegou aquele guardanapo e começou a rabiscar, ela não criou apenas um sketch. Ela criou um conceito.

E conceitos, como já sabemos, são atemporais.



Sources

1. ADC Hall of Fame http://adcglobal.org/hall-of-fame/paula-scher/
2. Madame Architec https://www.madamearchitect.org/interviews/2020/7/16/paula-scher
3. Eye Magazine http://www.eyemagazine.com/feature/article/reputations-paula-scher
4. Cloninger, C. (2007). Hot-Wiring Your Creative Process: Strategies for Print and New Media Designers. Berkeley, CA: New Riders, p.38.
5. On Creativity https://www.youtube.com/watch?v=foeV4ZML55s
6. Fast Company: https://www.fastcompany.com/57935/wordsmith
7. https://www.nytimes.com/1998/04/07/news/citicorp-and-travelers-plan-to-merge-in-record-70-billion-deal-a-new-no.html
8. Clever Podcast https://www.youtube.com/watch?v=YrBTLw1yPBk
9. Design Interview 1Q: https://www.youtube.com/watch?v=0ddshhUa_VQ
10. Abstract Paula Scher Episode: https://www.youtube.com/watch?v=LCfBYE97rFk
11. https://www.6sqft.com/interview-paula-scher-on-designing-the-brands-of-new-yorks-most-beloved-institutions/
12. beyondtellerrand https://beyondtellerrand.com/events/berlin-2017/speakers/paula-scher